Anos atrás, vi uma
amiga com dificuldades em montar numa bike porque tinha ficado muito
tempo sem pedalar. Depois de uns três tombos, ela conseguiu, mas ainda
sem muita segurança. Parece que essa memória não traz tudo de volta de
uma vez. O corpo vai lembrando e aprendendo devagar. Quando comecei a
fazer ginástica, na adolescência, o professor me disse que eu tinha boa
postura por causa do balé que fiz na infância. Mas quando voltei ao balé
pra ver se ainda gostava, aos vinte e poucos, tive de aprender quase
tudo de novo. Mal lembrava os nomes franceses dos passos básicos e
custava a acompanhar o resto da turma, sob o olhar severo do professor.
Ele gostava mesmo era das meninas com menos de 20 anos que conseguiam
levar a canela até a orelha.
Quando resolvi
fazer aulas de circo, aos 29, me disseram que minha facilidade para
algumas acrobacias certamente vinha da iniciação em ginástica olímpica
aos meus 8 ou 9 anos de idade, por mais curta que ela tenha sido. E, sem
dúvida, do balé também. Hoje estou com 33 e me pergunto até quando pode
durar essa memória corporal das minhas atividades da infância. Será que
eu poderia voltar a dar piruetas e saltos mortais tão facilmente agora
ou daqui a mais vinte anos quanto eu podia no auge da juventude? Sem me
machucar? Será que a gente tem direito a fugir um pouco da musculação e
da corridinha de sempre, que nos mantêm em forma e com saúde, para nos
aventurar em movimentos que desafiem também nossas habilidades e nos
deem prazer?
Fui testar.
Depois de quatro anos afastada do circo (fiz aulas por menos de um ano
em 2005), apareci na academia no último sábado disposta a me deparar com
minhas novas limitações provavelmente adquiridas com os últimos
aniversários. Eu já havia conversado com outra trintona que também tinha
desistido do circo em nome da idade, com medo de se contundir, e estava
certa de que correria mais riscos do que antes. Já cheguei avisando ao
professor (um menino de 24 aninhos) que fazia quatro anos e meio que eu
não pisava num tatame. Eu queria que ele me visse como café com leite e
"me desse um desconto" se eu errase demais. Perguntei se havia uma idade
máxima para o circo, e ele me respondeu "90". Mas é claro que ele não
estava pensando em acrobacias, e sim em malabares. E chamou uma das
alunas mais habilidosas da turma para tirar sarro da minha pergunta.
"Selma, ela está dizendo que é velha para o circo." E em seguida Selma
jogou na minha cara que tinha 48 anos.
Passei a
aula inteira observando a Selma. Corpão bonito, cabelo tingido de
amarelo (porque mulher não envelheve: fica loira), bunda dura, cintura
no lugar, lápis contornando os olhos e execuções quase impecáveis de
saltos mortais, reversões e outras acrobacias relativamente simples. Nos
intervalos entre um salto e outro, ela ainda ensaiava um joguinho solo
de capoeira, outra de suas recentes paixões. Disse que estava ali fazia
dois anos só. "E já aprendeu tudo isso?", perguntei. Ela sempre me
sorria uma resposta que fazia parecer que aquilo tudo era muito fácil. E
ainda profetizou: "É isso que rejuvenesce".
Acrobacia
não é meu forte. Em 2005, me saía melhor no chão, me equilibrando de
cabeça para baixo, subindo nos ombros de alguém, nos primórdios do que
eles chamam de pirâmide. Saltar me dá mais medo. Mas, neste sábado, a
proposta era saltar do minitrampolim para o colchão alto, de várias
formas. O professor me encorajava: "Vai, Fran. Você sabe". Ele
acreditava nisso porque viu que eu fiz bem o começo da aula. Mas o
começo da aula não tinha saltos, veja bem. O esquema era assim: a gente
fazia do jeito que saísse e depois ele dava umas dicas para errar menos.
Ainda bem que havia um colchão de pé na parede para a gente não quebrar
a cara, porque a chance de errar o salto e meter o nariz no lugar
errado não é pequena quando a gente ainda não tem a técnica.
Até aí, nenhuma diferença para minha primeira aula de acrobacia
quatro anos e meio atrás. Me senti tão desastrada quanto. Eu não sei com
que ritmo teria acontecido meu aprendizado se eu tivesse continuado as
aulas desde aquela época até hoje, mas é quase certeza que agora ele vai
ser mais lento, se eu decidir me dedicar como a Selma. Ela levou dois
anos para conseguir o que eu vi, tendo o balé na juventude como bagagem.
Se depois de dois anos ela consegue fazer mortal de frente, talvez eu
possa relembrar meus tempos de ginástica olímpica em menos tempo, hein?
Enchi o professor Allan de perguntas depois da aula. Ele me
confirmou que, quando a gente interrompe um treinamento, fica mais
difícil alcançar o mesmo desempenho depois. E, depois dos 30, o corpo
responde mais lentamente mesmo. A musculatura tem um tempo maior de
"volta à calma" e não se restitui após um esforço tão rapidamente quanto
fazia antes dos 25. Embora a ideia de voar do trampolim depois dos 50
pareça linda, o risco vai aumentando. Especialmente se a gente descuida
da alimentação. Porque o esqueleto ali está sempre batendo no chão com
força. Se estiver poroso, por falta de cálcio, pode ir acumulando
microfissuras e quebrar por estresse. Credo!
O
teste valeu para eu acreditar que pelo menos até os 50 ainda tenho
grandes chances de me divertir bastante, desde que tome os devidos
cuidados. Mesmo que eu decida adiar um pouco mais minha volta ao tatame.
Tenho uma amiga de quase 40 anos que há dois meses voltou às aulas de
jazz depois de 15 anos longe da dança. Eu pensei: Caramba! Jazz?! Aquela
coisa engraçada que minhas colegas ensaiavam no recreio na sexta série?
Aos 39?! Quis pagar para ver. Fui lá ver a Renata se preparando para
sua primeira apresentação. Imagino as duas filhas dela assistindo da
plateia, exatamente como a mãe dela deve ter feito quando ela era
novinha. Naquela época, de tão forte o chute, ela meteu o pé com tudo na
testa. Bem, agora a perna da Renata provavelmente não vai subir tanto.
Seu corpo já não é o mesmo, claro. Ao final da aula, ela estava exausta,
mas feliz por ter esquecido os problemas do trabalho por mais de uma
hora. Ainda é cedo para prever até onde ela vai. Mas se pode adivinhar
que aquele chute na testa está ali, na memória da perna dela, prestes a
devolver aos poucos a dança que ainda lhe pertence. Se o corpo tem
memória, eu acho que o melhor a fazer é não deixar que ele fique só na
lembrança.
(Originalmente publicado em www.epoca.com.br)
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