A convite da distribuidora, assisti ao documentário “Bebês”, que ainda não estreou nos cinemas. O filme do francês Thomas Balmès mostra cenas engraçadas e emocionantes do primeiro ano de vida de quatro bebês que vivem em realidades contrastantes. O primeiro bebê apresentado é uma menina que vive nua e cheia de terra numa aldeia perto da Namíbia, no Sul da África. Em seguida conhecemos um menino da Mongólia, que é levado de moto da maternidade para a chácara em que vai morar. Logo vem um bebê de Tóquio, que não demora a conhecer o computador, o celular e a rotina de trabalho do pai. E, por último, aparece uma loirinha de olhos azuis muito bem nascida em São Francisco, nos Estados Unidos, que vai crescer rodeada de livros, brinquedos e shopping centers.
Com pouquíssimas falas (até porque os personagens principais apenas balbuciam sons ainda incompreensíveis) e nenhuma narração, as cenas gravadas nesses quatro cantos do mundo, intercaladas conforme o passar dos meses, nos conduzem a comparar, com espanto, de que forma a felicidade estampada no rosto das crianças é influenciada pelo meio em que vivem.
O bebê africano está sempre no chão, interagindo livremente com a sujeira, com seus irmãos e primos e com os animais que lhe servem de companhia ou, eventualmente, de alimento. Ele não conhece fraldas. Seus brinquedos são as pedras e os ossos que encontra pelo caminho, e também os utensílios que a mãe usa no preparo da comida. O ambiente, feito de terra vermelha e uma paisagem muitíssimo distante das grandes cidades, é sempre calmo. As mulheres, sentadas na terra, conversam sem hora para terminar, com os peitos cheios de leite disponíveis, enquanto as crianças ocupam o tempo com o que encontram para fazer. Ali, parece quase não haver regras, muito menos de higiene. Reinam a tranquilidade e o descompromisso.
Na Mongólia, o menino recém-nascido é frequentemente amarrado com uma manta e dois cordões, formando um pacotinho, até que seus pais se sintam seguros para soltá-lo. Assim, impedido de movimentar as pernas, ele desde cedo enfrenta as limitações que sua cultura lhe impõe. Mas que, por enquanto, não são muitas. Numa casa simplória revestida de tapetes, ele brinca com o gato, é insistentemente azucrinado pelo irmão mais velho e convive sem alternativa com os animais da chácara, que não representam ameaça. E passa bastante tempo sozinho e quieto. Numa das melhores cenas, uma cabra se aproxima de uma janela e bebe água da bacia onde o menino toma banho. Ele se surpreende, mas não se assusta.
A garota de Tóquio, nascida longe da natureza, não tem muitas chances de descobrir o que o mundo dos animais tem a oferecer. Quando não está dentro do apartamento, procurando diversão entre objetos do mundo adulto, como CDs e folhas de papel, ela está sendo distraída em algum parque construído para que crianças da cidade sejam distraídas. Não admira que ela se desespere dentro do zoológico, quando se depara com um gorila atrás do vidro. Na cidade da tecnologia, a natureza parece estranha e assustadora demais.
Depois de rir da liberdade total do bebê africano, da naturalidade com que o menino da chácara na Mongólia convive com animais e do choque do bebê japonês dentro do zoo, o que me foi mais tocante foi ver como a criança americana – exatamente aquela que representa o estilo de vida mais próximo do meu – está alienada de tudo que é mais natural. No colo da mãe, a menina é apresentada aos animais de fazenda por meio de imagens e sons que apenas imitam a realidade. Com olhos curiosos, ela vê o desenho de vaca na página do livro e ouve a mãe fazendo “muuuuu”. Os pais dela, sempre presentes, atentos e protetores, procuram lhe oferecer tudo que há de melhor em seu mundo. Livros, aulas de coordenação motora e musicalidade na academia, banheira de hidromassagem, parquinho de areia, roupas coloridas, brinquedos de plástico e apetrechos que a ajudam a ficar de pé enquanto não aprende a andar.
O filme nos prega uma armadilha interessante. Faz parecer que a liberdade total na sujeira e o cotidiano mais rústico são imensamente mais desejáveis do que a parafernália de recursos dos quais não conseguimos abrir mão na sociedade ocidental industrializada, institucionalizada e educada. Aos meus olhos, os bebês que vivem soltos na terra, em meio aos bichos e às moscas, pareceram mais felizes.
Não creio que seja o caso de abrir mão dos nossos rigorosos padrões de higiene, que evitam doenças e garantem a sobrevida das crianças. Na aldeia africana, as mulheres perdem dentes cedo demais, e a barriga das crianças é suspeitamente estufada. Mas me parece que nos falta um bocado mais de liberdade e de sujeira saudável para que possamos nos sentir, na infância e na vida adulta, como seres humanos mais reais.
A criança que interage com a natureza aprende, sem precisar de livros, de onde é que as coisas vêm. Ou seja, aprende o ciclo da vida. O bebê da Mongólia participava junto com a família da dissecação dos animais que seriam transformados em carne e, depois, em comida. Para ele, o conteúdo do seu prato, quando começar a mastigar, não será um mistério, nem parecerá um objeto qualquer, que vem do comércio. No mundo dos shopping centers, a comida é meramente um produto sem história nem qualquer ligação com o ciclo da vida. As crianças criadas longe das fazendas podem acreditar que o leite vem da caixinha.
Me parece importante saber que o alimento vem da vida e da morte. E que nossa vida está inevitavelmente atrelada a esse ciclo. De onde virá a ética de um cidadão, senão da consciência de que, para uns manterem-se vivos, é preciso que uns matem e outros morram? Manter-se vivo é essencialmente comer, e comer é retirar energia de outros seres vivos, como plantas que geram grãos, hortaliças, árvores frutíferas e outros animais.
Quando encaramos o alimento como apenas um objeto, um produto que basta comprar, nos alienamos do ciclo de vida e morte do qual dependemos. E, mais importante, perdemos a oportunidade de nos encantar com a beleza desse ciclo. Para as crianças, participar dos rituais de preparação do alimento com a família e a comunidade é das atividades mais divertidas e gratificantes, e que imprimem nas suas experiências em sociedade um significado para toda a vida. Como o inesquecível mutirão da pamonha que acontecia nas férias no sítio do meu tio mais rural.
Penso que, se um dia eu tiver um filho, terei de dar um jeito de despachá-lo para esse tipo de lugar onde se bebe água de riacho, se mata bicho para comer, se colhe fruta do pé. E deixá-lo bem livre, descalço e nu, para enfrentar sozinho, na medida de suas capacidades, os pequenos desafios que a natureza oferece às crianças. Quero que ele saiba o que é uma vaca e por que algumas vezes ele irá comer o corpo dela. Quero que ele saiba que seu próprio corpo é feito de outras vidas, inclusive de vidas minúsculas, como bactérias e fungos, que ele irá alimentar com sua dieta. Quero que ele saiba que a gente pode escolher de quais vidas e mortes irá se alimentar, e quais vidas iremos alimentar com a nossa. Acredito que assim ele entenderá logo que tudo que a gente consome vem de algum pedaço da natureza e será devolvido a ela de outra forma. E poderá se tornar um cidadão consciente das consequências dos seus hábitos de consumo no seu próprio corpo e no planeta.
(Originalmente publicado em www.epoca.com.br)
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