Como o GoodGuide, um serviço gratuito de comparação de produtos,
pretende forçar os fabricantes a ser mais transparentes com os
consumidores
Esta semana conversei com o pessoal do GoodGuide, um site americano que avalia e compara, gratuitamente, três aspectos da qualidade dos produtos que normalmente o consumidor não consegue avaliar sozinho.
Eles avaliam os mais diversos tipos de produtos, de biscoitos a
desinfetantes, passando por papinhas de bebê. A partir das informações
na embalagem e de algumas pesquisas feitas por terceiros, eles pontuam
em que medida cada produto afeta nossa saúde, o meio ambiente e o
bem-estar social.
Para saber o que o sistema
“pensa” de um produto, basta digitar o nome desse produto no campo de
busca do site, ou mesmo no Google. Ou então procurá-lo dentro de sua
categoria num dos menus da página inicial. Se o produto estiver
cadastrado no GoodGuide, a foto dele aparecerá ao lado de três notas,
que correspondem a quão bom ou quão ruim ele é nesses três aspectos que
mencionei acima. No caso dos alimentos, ele dá as notas mais altas aos
itens mais saudáveis e discrimina os alimentos inegavelmente piores para
a saúde. O sistema também faz comparações ótimas dentro de cada
categoria de produto e fornece listas do tipo “as piores opções para o
café da manhã”, que é para não ter dúvida, por exemplo, de que tipo de
pedido do seu filho você deveria recusar prontamente.
Na avaliação nutricional, o GoodGuide é parecido com o NuVal, sistema que apresentei numa matéria recente aqui na revista.
Só que o NuVal está sendo usado por supermercados. O GoodGuide está na
internet e num aplicativo para o iPhone, ou seja, pode ser consultado de
qualquer lugar, a qualquer hora.
O GoodGuide
surgiu em 2007 como um projeto acadêmico liderado pelo professor Dara
O’Rourke, que dá aulas de políticas ambientais e laborais na
Universidade da Califórnia. Hoje é uma empresa com fins lucrativos, com
menos de 30 funcionários, que batalha para conseguir lucrar em cima de
um serviço baseado em apontar o dedo para o que toda a indústria
americana faz – de bom e de ruim. Segundo Josh Dorfman, responsável pelo
marketing do GoodGuide, com quem conversei na terça-feira, o site já
tem 100.000 produtos avaliados segundo 1.500 atributos e recebe 600.000
visitas por mês. Que eu saiba, não existe nada parecido no Brasil.
A seguir, ofereço a você duas entrevistas, que transcrevi quase
na íntegra. A primeira é com Sheila Viswanathan, nutricionista do
GoodGuide, que falou comigo sobre as avaliações dos alimentos. Em
seguida, Josh Dorfman fala das dificuldades de transformar o site num
serviço realmente útil, transformador da sociedade e também lucrativo.
Boa leitura.
Entrevista com Sheila Viswanathan, nutricionista do GoodGuide:
Como começa o trabalho? Vocês compram todos os produtos que avaliam?
Éssa
é uma ótima pergunta, que raramente nos fazem. Não, nós não compramos
os produtos. A quantidade de produtos que avaliamos torna impossível
comprar tudo. O que fazemos é colecionar dados.
As informações sobre os produtos vocês obtêm na internet?
A maioria. Em aguns casos, telefonamos para as fábricas pedindo mais dados. No caso dos alimentos, conseguimos tudo online.
Então os dados que vocês usam são aqueles que qualquer um pode ler no rótulo dos produtos? Nada mais?
Para
calcular a nota do alimento, nós usamos a tabela nutricional, a lista
de ingredientes e as alegações que aparecem na frente da embalagem. Por
exemplo, consideramos se é um produto orgânico. Existe nos Estados
Unidos uma organização que verifica quais produtos usam ingredientes
geneticamente modificados, e nós usamos as informações deles também.
Análises laboratoriais para verificar a composição química dos produtos vocês não fazem?
Não.
Logo, para dar nota aos produtos vocês têm de partir do princípio de que o que está escrito na embalagem é verdade?
Nós
consideramos que o que está escrito na tabela nutricional é legalmente
considerado verdadeiro (pois segue o que a legislação manda). Mas as
alegações de marketing na frente da embalagem são outra história. Nós
não confiamos nelas para dar as nossas notas.
Que tipo de alegações de marketing são essas?
Frases como “melhora sua imunidade” ou “é saudável para o
coração”. Não encaramos essas frases como fatos, e elas não intereferem
na nossa avaliação de quão saudável ou nutritivo o produto é. Eu
acredito que nossas notas ajudam justamente a desmascarar as alegações
de marketing que tentam confundir o consumidor.
Há regras claras para essas alegações nos Estados Unidos?
Certamente
há regras, mas também há brechas para que as fábricas consigam enganar
os consumidores. As normas não são fortes o bastante para evitar isso. A
regulação não é amigável ao consumidor; é amigável às indústrias.
Em
quem o consumidor americano mais confia? No governo, nas indústrias, em
programas como o Smart Choices (espécie de certificação de produtos
“saudáveis”criado por um grupo de indústrias de alimentos, atuante no
Brasil com o nome Minha Escolha) ou no GoodGuide?
Acredito
que o Smart Choices estava indo bem até que alguns problemas
aconteceram. Eles deram o selo para produtos claramente não saudáveis
(como o colorido cereal Froot Loops, da Kellogg’s), e isso abalou sua
credibilidade. Neste momento, me parece que o governo e as tabelas
nutricionais são as referências mais confiáveis para o consumidor
americano. Já os usuários do GoodGuide eu diria que confiam mais em nós
do que no governo e nas tabelas nutricionais. Nós oferecemos um pouco
mais de transparência. Mas ainda não somos conhecidos no país inteiro.
Estamos trabalhando para isso.
E o que o GoodGuide faz que os outros não fazem e que o torna mais transparente? Há
dois motivos para considerar que proporcionamos mais transparência. Em
primeiro lugar, nós olhamos para além dos nutrientes. Nós avaliamos os
ingredientes, verificamos se é orgânico, se usa ingredientes
modificados, quais os impactos do produto no meio ambiente e na questão
social. Ou seja, avaliamos mais do que o impacto do alimento na saúde. O
segundo motivo é que nosso serviço está todo online. Você pode
pesquisar sobre qualquer produto às 3h da manhã. Não precisa esperar
ninguém ligar de volta para você com a informação que você quer. E você
pode saber na hora por que um determinado produto levou determinada nota
no nosso sistema.
Não sei se o caso do
Froot Loops foi um erro, mas já que agora sabemos que esse tipo de coisa
pode acontecer, como nós, consumidores, podemos nos guiar melhor diante
de tantas fontes de orientação do nosso modo de consumir alimentos?
Como posso me certificar de que o GoodGuide não vai errar também?
Nesse
contexto, escolher alimentos saudáveis é realmente desafiador. O Smart
Choices dava um OK para, por exemplo, produtos cujo conteúdo de açúcar
estivesse abaixo de um determinado limite, ou que contivesse um
nutriente bom, como a vitamina C. O problema é que, quando você avalia
um produto com base em um único nutriente, você fecha os olhos para os
outros atributos desse produto. O GoodGuide avalia essencialmente a
densidade de nutrientes. Nós comparamos tudo que o produto tem de bom
com tudo que ele tem de ruim, e isso nos dá uma visão mais abrangente de
quão saudável o alimento é.
Como os usuários têm reagido às avaliações do GoodGuide?
Bem,
eu sou uma cientista por natureza. Adoraria poder fazer uma ampla
pesquisa para verificar como os consumidores compram, como usam as
notas, como o GoodGuide pode ajudá-los a melhorar a saúde. Mas
infelizmente ainda não temos recursos para fazer isso. Por enquanto,
temos algumas respostas qualitativas que mostram que pelo menos alguns
usuários estão aprendendo um pouquinho mais sobre o que procurar nos
alimentos. Até mesmo para quem, por exemplo, quer comprar batata chips,
nós ajudamos a escolher a que é melhorzinha. Há pessoas que visitam
nosso site que são completamente desligadas do que é um alimento
saudável. Eles podem usar o sistema para começar a entender que os
alimentos minimamente processados são melhores que os ultraprocessados.
Também há aqueles que já sabem disso e estão procurando conselhos mais
específicos. Entre os cereais matinais, por exemplo, há escolhas ótimas e
outras muito ruins. Você pode usar o GoodGuide para encontrar o melhor.
Alguém já se sentiu ofendido com alguma avaliação de vocês?
Sempre
aparece alguém que discorda, sim. Mas é mais comum que os usuários se
sintam surpresos com algo que eles não imaginavam ser ruim – e gratos
por ajudá-los a descobrir isso. Claro que há empresas que reclamam que
deveriam ter recebido uma nota maior por seu produto. Também há
consumidores que acreditam que deveríamos ter acrescentado atributos
para alguns itens, normalmente atributos que nosso grupo de cientistas
considera que ainda não estão comprovados.
Que
tipo de informação as pessoas costumam achar mais difícil avaliar por
conta própria – e que o GoodGuide ajuda a interpretar?
Acredito
que o conceito de densidade de nutrientes, que mencionei anteriormente,
é nossa maior contribuição na área de alimentos. Há muitos
supermercados nos Estados Unidos agora com avisos nas prateleiras
chamando atenção para o teor de ferro ou vitamina A nos alimentos, e
dando destaque para produtos que alegam fazer bem para o coração. E o
que acontece comumente é que o cliente vê aquilo, pensa ‘oh, isso faz
bem para meu coração’, e leva o produto. Infelizmente, um produto bom
para o coração pode conter também algo que não é tão legal e que não vai
aparecer na chamada do supermercado. Há muita informação nutricional
chegando até o consumidor, e as coisas mudam muito frequentemente. Fica
mais fácil focar num nutriente só do que visualizar o conjunto todo. É o
que estamos tentando mudar.
Como vocês avaliam os orgânicos? Eles necessariamente levam nota maior só por serem orgânicos?
Na
comparação com os não orgânicos, sim. Por exemplo, um salgadinho
orgânico pode ter nota maior do que um salgadinho não orgânico, mas
nunca será mais saudável do que uma maçã não orgânica. Porque para nós o
que mais conta é a densidade nutricional. Esse é o tipo de coisa que
confunde muito os consumidores. Li um estudo que mostra que, para muita
gente, o termo orgânico parece dar ao produto um efeito curativo. Mas só
o fato de ser orgânico não torna o alimento automaticamente saudável
nem dá motivos para consumi-lo a todo momento. Um biscoito orgânico será
sempre um biscoito.
Por enquanto, tudo
que vocês podem avaliar dos produtos industrializados é o que as
indústrias divulgam. Vocês têm projetos de incluir nessa nota dados que
não estão disponíveis para qualquer um? Por exemplo, sobre como são as
estratégias de marketing?
Já pensei em incluir de
alguma forma o marketing voltado para crianças na nossa avaliação, mas
não na parte da saúde. Eu o incluiria na parte social, porque o impacto
desse marketing é mais social. Mas esbarramos de novo na disponibildade
de informações. Para caracterizar as práticas de marketing das empresas,
precisaríamos ter informações sobre um grande número deles. Além disso,
precisaríamos de uma pesquisa muito limpa sobre o que é o marketing bom
ou ruim. Nos Estados Unidos, todas as empresas poderão dizer que suas
ações de marketing seguem as normas do setor, e isso será verdade. Então
nosso primeiro passo é distinguir o que é bom e ruim nas informações
dos rótulos, e o segundo passo será coletar informações mais abrangentes
de todas as empresas.
Você acredita que depende do governo facilitar que esse entendimento do que são os produtos seja mais preciso?
O governo poderia fazer mais. Em alguns países o governo trabalha mais nesse sentido. Não é o caso dos Estados Unidos.
Entrevista com Josh Dorfman, do marketing
Como o GoodGuide se sustenta? Vocês têm patrocínios e espaço para propaganda?
Somos uma empresa com fins lucrativos cuja missão é direcionar
os consumidores para as boas empresas e facilitar que essas empresas
contem sua história. Nós nos vemos como uma plataforma a ser
estabelecida entre os consumidores interessados em fazer compras de
acordo com os valores da responsabilidade ambiental, social e de saúde e
as empresas que estão crescentemente comprometidas com serviços que
atendem essas necessidades. E, sim, damos às empresas com melhores notas
no GoodGuide a oportunidade de anunciar no nosso site. Frequentemente
dizemos a essas companhias, especialmente aquelas que anualmente
publicam seus relatórios de sustentabilidade e responsabilidade social,
que elas gastam milhões de dólares por ano com esses relatórios que
ninguém lê. Nós queremos que elas abram as informações mais relevantes
desses relatórios para o público, de uma forma que os consumidores
possam aproveitar na hora da compra.
Quem é que está gostando do que vocês estão fazendo e quer dar dinheiro para o GoodGuide?
Fabricantes de produtos orgânicos, por exemplo. A Phillips,
fabricante de lâmpadas, cujo maior concorrente é a GE, ainda não é nosso
anunciante, mas nos procurou bem feliz por ter levado uma nota maior
que a GE no nosso site. Se eles quiserem anunciar conosco, ficaremos bem
contentes. O que não aceitamos é dinheiro de empresas que pretendam,
com isso, influenciar nossas avaliações. Quer dizer, não vendemos notas.
Temos uma barreira de fogo nesse aspecto.
Além
dos anúncios, temos investidores. Nossa empresa é uma de capital de
risco (venture capital). Há seis meses, um novo time de administadores
chegou aqui. Temos um novo CEO, um novo vice-presidente de
desenvolvimento de negócios, um novo vice-presidente de marketing. Eles
estão transformando o GoodGuide num negócio. O GoodGuide começou em 2007
essencialmente como um projeto acadêmico na Universidade da Califórnia,
em Berkeley. No começo, a prioridade era fazer o trabalho científico
funcionar, com precisão e credibilidade. Agora é que estamos indo atrás
do faturamento.
O que é preciso fazer para esse empreendimento dar certo?
É um desafio. Em primeiro lugar, temos o desafio de oferecer um
serviço útil. Nós vivemos num mundo não transparente. As empresas, mais
do que frequentemente, não querem revelar o que está em seus produtos,
quais são suas práticas de rotulagem, onde estão localizadas as suas
fábricas. E, muito frequentemente, a legislação não as obriga a revelar
essas coisas. Nós nos posicionamos bem em cima desses limites, tentando
tornar o mundo mais transparente. Isso é muito desafiador. Com relação
às nossas avaliações, podemos dizer com segurança que são precisas no
sentido de apontar quais empresas estão fazendo os melhores produtos.
Mas não podemos garantir com 100% de certeza que temos a nota exata para
todos os produtos, pois não temos todas as informações necessárias para
fazer uma análise completa. Em alguns casos, o produto pode levar uma
nota baixa justamente por percebermos que o fabricante não está sendo
transparente nas informações que disponibiliza.
Vocês já compararam as notas dos produtos com o quanto eles vendem?
Não
exatamente. O que fazemos é procurar avaliar os produtos mais vendidos
no mercado nacional. Temos de ter pelo menos os produtos que correpondem
a 80% de market share em cada categoria. Mas é difícil avaliar todos os
produtos. Há muitos produtos no mercado, e não temos dinheiro para
contratar centenas de pessoas para fazer as análises. Procuramos na
medida do possível incluir produtos de empresas menores e crescentemente
estamos aceitando sugestões dos usuários e de empresas. Começamos
recentemente a abrir votações no site para que as pessoas decidam se um
determinado tipo de produto deve ser incluído nas avaliações. Estamos
animados com essa novidade.
O GoodGuide é visto pelas empresas como uma ameaça?
Bem... Sim. Temos usuários fiéis que adoram o GoodGuide. Mas
somos pouco conhecidos entre os consumidores. Até porque, até poucos
meses atrás, não tínhamos departamento de marketing – eu vim para
assumir essa parte aqui. Mas nas empresas nós somos bem conhecidos e
vistos como um tipo de ameaça porque estamos forçando que elas sejam
transparentes mais rapidamente do que elas se sentem confortáveis em
ser. Elas têm medo de escancarar as informações porque, por muito tempo,
o importante era guardar tudo em segredo. Mas o que temos visto é que,
quando a empresa torna públicas as informações sobre seus produtos, só
coisas boas acontecem. O market share não cai e os consumidores gostam. A
SC Johnson, fabricante de produtos de limpeza muito conhecida no
mercado americano, recentemente anunciou que abriria para o público os
ingredientes que ela usa nos produtos, coisa que até agora ela não fazia
por medo de ser copiada pela concorrência. A postura da empresa agora é
de não ter nada a esconder. Essa é uma tendência que está começando. As
empresas querem ser mais transparentes, mas se sentem ameaçadas pelo
GoodGuide porque preferem fazer isso no ritmo delas, sem ser forçadas a
agilizar o processo antes que estejam prontas. E nós dizemos: pior para
vocês, pois a hora é agora e já estamos fazendo.
(Originalmente publicado em www.epoca.com.br)
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