23 de jun. de 2011

Concorrentes de mentirinha



Que marca escolher quando as opções pertencem à mesma empresa?


Não tenho o costume de comprar manteiga, mas no último domingo resolvi trazer uma para casa, inspirada pelos ótimos risotos multigrãos com legumes que meu namorado inventa. Não tenho uma marca preferida de manteiga, até porque manteiga costuma ser mais ou menos tudo igual, já que é feita meramente de creme de leite pasteurizado com sal. Pra escolher requeijão, sim, tenho critérios mais precisos, pois os requeijões parecem ser feitos cada vez mais de ingredientes novos.

(No caso do requeijão, vejo principalmente o número de ingredientes e o tempo de prateleira. O número de ingredientes me indica a quantidade de porcarias adicionadas ao que interessa no produto. O ideal é que esse número seja o mais próximo possível de 4, pois creme de leite, fermento lácteo, coalho e sal deveriam ser suficientes para fazer um requeijão decente. O resto é encheção de linguiça pra baratear o custo de fabricação. Já o tempo de prateleira me indica se há ou não excesso de conservantes. Quanto maior a distância entre a data de fabricação e a data de validade, subentendo que será maior a quantidade de conservantes no requeijão. Esses critérios, aliás, me fizeram deixar de ser fiel a uma marca de que eu gostava muito na infância.)

Então, diante das várias opções de manteigas aparentemente iguais no supermercado, parei diante de duas com preço parecido e que estavam lado a lado: Batavo e Elegê. A diferença de preço era de cinco centavos. Olhei os ingredientes: exatamente os mesmos nas duas marcas. E aí reparei num outro dado comum nas duas: o endereço da fábrica. Então as duas manteigas tinham origem na mesma fazenda? Sim. E não só isso. As duas marcas pertencem à mesma empresa e, ao contrário do que me pareceu no primeiro momento, não são concorrentes.


Batavo e Elegê são ambas marcas do grupo BrasilFoods, criado em 2009 a partir da fusão entre as até então concorrentes Sadia e Perdigão. Há algumas semanas, o processo de aprovação dessa fusão no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) foi interrompido, pois um conselheiro considerou que o fim da concorrência entre as duas marcas pode ser prejudicial ao mercado.

O assunto está na imprensa como uma questão legal com grandes implicações estratégicas para a indústria de alimentos. Reportagem da Época Negócios de junho prevê que a decisão sobre o destino da Brasil Foods vai caber aos tribunais, pois não será fácil convencer o Cade a aprovar o negócio como ele foi concebido pelas empresas participantes. A suspeita é que o Cade vá no mínimo querer obrigar a BF a vender uma das empresas para não impedir a livre concorrência.

A Brasil Foods não é a primeira a fundir numa mesma empresa duas antigas concorrentes. Essa é uma prática comum em diversos setores. Antes de Sadia e Perdigão virarem amigas, a Colgate comprou a Kolynos (lembra dela?), a Antarctica e a Brahma se juntaram na AmBev e a Nestlé comprou a Garoto. A Kolynos sumiu, dando origem à Sorriso, mas a Garoto continua tão presente no supermercado quanto sempre esteve. Ou você, quando compra chocolate, percebe alguma diferença no posicionamento das duas marcas na prateleira?

Não entendo muito dos grandes negócios nem das enormes cifras envolvidas num mercado tão concentrado, mas entendo um pouco de fazer compras no supermercado. Para mim, interessa saber se, na hora de comprar laticínios, embutidos, chocolate ou seja o que for, vou ter alguma dificuldade de encontrar alternativas com preço interessante, formulação diferente ou novidades atraentes. Também me interessa saber se a marca em que eu um dia confiei continua sendo a mesma marca, ou se tudo no modo de fabricação do produto mudou e eu não fui avisada (mais ou menos como aconteceu com a marca de requeijão que um dia foi minha preferida, mas de tanto passar de mão em mão, ou seja, de tanto ser comprada e vendida por várias empresas, eu não reconheço mais).

Para me informar melhor e saber o que fazer nas próximas compras, pedi ajuda à advogada Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Associação Pro Teste, que zela pelos direitos do consumidor e está comemorando dez anos este mês. Acompanhe abaixo o que ela me disse:

Nunca Fui Gorda – Como você avalia, do ponto de vista da defesa do consumidor, a criação da Brasil Foods, que une antigas concorrentes como Perdigão e Sadia numa única empresa? A fusão interfere de alguma forma no direito do consumidor?
Maria Inês Dolci – O que tem de ser avaliado é o quanto o consumidor ainda mantém de opções de mercado neste segmento de produtos da Brasil Foods. Outras perguntas que devem ser respondidas: quanto por cento do mercado é dominado pela BF?; houve aumentos expressivos de preços nesta área após o anúncio da fusão? Em princípio, fusões tendem a concentrar mercado, o que é nocivo para o consumidor.
 
NFG – No caso de o Cade aprovar a fusão, qual deveria ser a forma de a empresa comunicá-la aos consumidores das duas marcas que antes concorriam?
Maria Inês – Caso a fusão seja aprovada, é importante que a BF se manifeste em relação a seu compromisso com um mercado não oligopolizado, e que expresse claramente quais os objetivos da fusão e de que forma beneficiará o consumidor. 

NFG – A Nestlé e a Garoto também não são mais concorrentes, desde que a primeira comprou a segunda. Você sabe dizer se isso afetou a forma como os produtos das duas marcas são vistos ou consumidos?
Maria Inês – Ainda não há uma avaliação clara sobre o mercado em que estas empresas atuam. Seria importante que o próprio governo bancasse pesquisas para avaliar os efeitos desta fusão em relação à concorrência.
 
NFG – Houve alguma incorreção na forma como as empresas passaram a trabalhar suas marcas?
Maria Inês – Na minha avaliação, faltou um esclarecimento inicial público sobre motivos da fusão, benefícios para o consumidor etc.
 
NFG – É relevante, para o consumidor, saber se dois produtos semelhantes de marcas diferentes (como chocolates Garoto e Nestlé ou manteigas Batavo e Elegê) são de fato diferentes ou se são na verdade o mesmo produto com nomes, embalagens e preços um pouco diferentes? Por quê?
Maria Inês – Toda informação é relevante na escolha de produtos e de serviços. Saber que dois produtos têm o mesmo dono, embora com marcas diferentes, pode influenciar decisões de compra.
 
NFG – Há alguma pesquisa sobre a forma como o consumidor vê a fusão entre marcas conhecidas?
Maria Inês – Não, e é uma grande lacuna a ser preenchida pela defesa da concorrência. Seria importante, inclusive, para apoiar as decisões do Cade. Mesmo que haja pesquisas, se não forem divulgadas publicamente, não terão efeito para o consumidor.
 
NFG – Você saberia citar outros casos, além da Brasil Foods e da Nestlé, de empresas de alimentos que se fundiram e de marcas que parecem mas não são concorrentes? Vale também citar o que aconteceu (no aspecto direito do consumidor) com marcas de outros setores, como Kolynos e Colgate.
Maria Inês – Foi anunciada, no ano passado, a fusão dos frigoríficos JBS e Friboi, com a aquisição em paralelo da empresa norte-americana Pilgrim's Pride, que atua no setor de aves. A fusão criou a maior companhia mundial de processamento de bovinos. O Cade teria exigido que a nova empresa vendesse unidades de abate (da JBS ou Friboi) em Goiás e Minas Gerais, para aprovar a fusão. No caso das marcas Kolynos e Colgate, foi importante exigir o uso de nova marca "Sorriso'. Há concentração de mercado também, embora com concorrentes fortes. 

NFG – Tendo isso em mente, no que o consumidor deve prestar atenção na hora de comparar alimentos semelhantes?
Maria Inês – Qualidade dos produtos, preços, reputação das marcas envolvidas, nível de informação sobre a fusão, reclamações existentes sobre as marcas que se fundiram.

Se for pensar em toda essa negociata toda vez que for ao supermercado, acho que nunca mais farei compras do mesmo jeito. Cada vez mais eu me conscientizo de que fazer compras é fazer política e tomar decisões importantes não só para mim, mas para o país.

E você? Tem dúvidas sobre as mudanças ocorridas entre marcas tradicionalmente conhecidas? Quer saber mais sobre o mercado de alimentos? Mande suas perguntas pra cá. Quem sabe, juntos, a gente muda esse mundo pra melhor.


Um comentário:

Nádia Pontes disse...

É importante trazer discussões como essa à tona. O consumidor brasileiro, infelizmente, ainda não se atenta muito a esses detalhes e o quanto a organização do mercado pode prejudicá-lo.