Será mesmo justo que quem se cuida e quem se estraga paguem o mesmo?
Não deu para escapar. Uma vez desconectada
da organização que me pagava certos benefícios garantidos pela lei trabalhista,
tive de contratar eu mesma um plano de saúde. E foi assim que entrei para o rol
dos sei lá quantos brasileiros que esbravejam todos os anos por desembolsar uma
grana preta em nome de uma suposta segurança contra a morte num hospital de
quinta categoria.
O corretor veio até mim para discutir os
preços e coberturas. Tudo meio esquisito. Um determinado plano cobria vários
hospitais e maternidades considerados ótimos, mas deixava os laboratórios
medianos só para o pacote top de linha. Medianos, hein. Laboratório top ficava
de fora. Outra empresa incluía alguns laboratórios medianos no plano básico,
mas restringia as maternidades renomadas para quem pagasse mais caro. Então ou
eu merecia internação decente, ou eu merecia exames precisos. As duas coisas
num mesmo plano eu não conseguiria, a menos que conquistasse antes um emprego
daqueles, com um salário estupendo. Mas aí eu provavelmente não precisaria mais
contratar meu próprio plano médico. Não faz sentido.
Fiz as contas e concluí que teria menos
prejuízo se contratasse um plano simples que cobrisse pelo menos um bom
hospital-maternidade e um laboratório mediano. E os bons médicos? Esses eu
poderia pagar no particular com o dinheiro “economizado” com a mensalidade
“barata” do plano de saúde, se não encontrasse nenhum especialista aceitável no
livro de credenciados.
O corretor apoiou a decisão e começou a
contar histórias de como os planos de saúde podiam ser injustos. Falou de como
as empresas orientam os corretores a evitar que idosos contratem planos.
Afinal, esse é um grupo de clientes que efetivamente vai usar o plano, dando
despesas altas e frequentes para quem vai pagar a conta do médico, do
laboratório e do hospital. Disse que o objetivo das seguradoras é ter o máximo
de clientes jovens pagando por um serviço que usarão muito pouco, e o mínimo de
clientes doentes usando o serviço à vontade.
Deve ser uma merda ser velho e doente, pensei. Mas
também é uma merda a gente ter de bancar os tratamentos dos outros. Enquanto eu
pago a mensalidade (e os impostos que vão para o SUS) sem ir ao médico, há um doente indo ao pronto-socorro toda
semana, bancado em parte pela mensalidade que eu pago. Será justo esse sistema?
Ou seria mais razoável cada um pagar pela saúde ou pela doença que cultivou ao
longo da vida?
Pensei nos fumantes. Esses são
autoboicotadores insistentes. Um cigarro após outro, estão conscientemente se
estragando. Estragam os pulmões, os dentes, a pele, o olfato e o paladar, e
apostam ingenuamente que nunca sofrerão as consequências, ou que as
consequências estão tão longe, lá numa remota velhice, que não precisam se
preocupar agora. No dia em que algum deles adoece, e já é tarde para recuperar
a saúde que perdeu, alguém vai precisar pagar a conta. Serei eu? Eu, que fiz
questão de me manter desde sempre o mais afastada possível dessa porcaria que é
o cigarro?
Pensei também nos sedentários. Que direito
têm eles de esperar cobertura completa pelo plano de saúde ou tratamento
gratuito do SUS, se abriram mão de fazer aquilo que ninguém pode fazer por eles
em prol da saúde? Será mesmo que quem destrói a própria saúde com alimentação
inadequada, abuso de álcool e drogas, sedentarismo ou qualquer comportamento
autodestrutivo deveria pagar o mesmo pelo atendimento de saúde que aqueles que
investiram parte da sua renda em atitudes preventivas?
Em qualquer sistema de previdência, quem
deposita mais recursos ao longo da vida tem direito a uma aposentadoria melhor
no futuro. O seguro de automóveis também premia quem cuida bem do carro. Se
você estaciona o carro sempre em garagem coberta e se não teve sinistros no
último ano, ganha um desconto na renovação. A mim parece justo que quem cuidou
mais da saúde desde cedo também tenha mais descontos no tratamento de doenças
inevitáveis. Mas os planos de saúde dividem seus clientes apenas de acordo com
a idade e a presença de doenças previamente instaladas, se declaradas no
momento da contratação. Se dentro da mesma faixa de idade há sedentários e
atletas, fumantes e antitabagistas, pouco importa. Todos pagam a mesma
mensalidade agora.
Minha percepção é que ainda não temos de
fato um sistema de saúde no Brasil. Temos um sistema de doença. Dizem que no
Oriente as pessoas vão ao médico quando estão saudáveis, e pagam pela consulta
a fim de garantir que continuarão saudáveis. Quando o paciente fica doente, aí
o médico tem um problema, pois mostrou que não foi capaz de cuidar bem da saúde
dele. E aí a remuneração do médico piora.
No meu castelo de areia (que alguns dirão
ser um tanto fascista), todo mundo tem a obrigação de cuidar da própria saúde
comendo direito, fazendo exercícios, passando por um dentista e um clínico
geral anualmente, além do ginecologista no caso das mulheres. Esses atendimentos
preventivos poderiam ser gratuitos. Quem deixasse de fazer sua parte e optasse
por abandonar-se à própria sorte teria necessariamente de fazer uma poupança
para bancar os tratamentos que viessem a ser necessários. Pelo menos assim cada
um seria responsabilizado pela vida que escolheu levar.
Um amigo diz que está começando uma campanha para transformar o exercício físico num hábito higiênico, tanto quanto tomar banho ou escovar os dentes diariamente. Não é uma ideia nova. Antigamente a ginástica era considerada uma disciplina higienista. Também fiquei sabendo de um movimento que começou nos Estados Unidos e deve em breve chegar ao Brasil que pretende convencer todos os médicos, de todas as especialidades, a prescrever exercícios como se fossem remédio, com dosagens necessárias e tudo mais. Vamos começar logo isso aí, pessoal? Deixar todo mundo se estragando pra que a indústria da doença possa faturar em cima de tratamentos caros é que não dá mais, né?
7 comentários:
Olá Francine, boa noite! Trabalho na área da saúde e é exatamente isso que acontece. Parabéns pelo texto. Vou repassar para os colegas. Abraços, Vívian
fran, tô adorando isso aqui! ótimo post. mas confesso que me senti culpada. as usual.
Francine, faz tempo que eu quero comentar esse seu post. Eu acho que tem um problema no seu raciocínio (que me lembrou, aliás, imediatamente da maneira como pensam os estadunidenses sobre o sistema de saúde): vc parte de um princípio de que as pessoas são puramente racionais... e elas não são. Além disso, pensando especificamente no Brasil, as pessoas têm deficiências muito muito grandes, que vão muito muito além da questão do autocuidado com a saúde. Muita gente, muita mesmo, não tem saneamento, não tem educação, não tem o básico. Se gente rica, estudada e com acesso a nutricionista e psicólogo não consegue se cuidar direito, o que dirá de quem não sabe sequer ler? De quem não tem esgoto em casa? Lógico, qualidade de vida e sabedoria não tem SÓ a ver com isso (basta ver os índios que ainda moram em aldeias, que vivem muito bem, os ribeirinhos no Amazonas, que sabem todos os remédios da floresta, as pessoas que moram na roça que, às vezes se alimentam melhor que a gente). Mas pra grande parte da população brasileira, as condições de vida nas cidades são aviltantes. Por isso eu questiono o seu raciocínio: acho que ele é um pouco descolado da realidade da maioria das pessoas. E porque cuidar da saúde não é algo que envolva estritamente o racional... como, aliás, tudo na vida.
Sim, Emilia, é verdade que a saúde não depende apenas da nossa atitude. Não há como negar esses fatores que você ressaltou. Saneamento básico é fundamental, e nesse caso um "seguro" contra problemas que fogem à nossa responsabilidade parece mesmo bem-vindo. Mas ainda acho que vale a pena aumentar os estímulos para que as pessoas se sintam um pouco mais responsáveis por sua saúde, numa época em que as doenças que mais matam são as associadas ao estilo de vida. Já estão surgindo programas de desconto no plano de saúde para quem se cuida, e não só voltados para os indivíduos. As empresas também já podem obter incentivos fiscais se adotarem programas de prevenção para seus funcionários. As empresas, aliás, por explorarem a dedicação dos trabalhadores a atividades exaustivas, têm grande responsabilidade pela saúde deles. Essa conscientização é importante, e ainda há muita responsabilidade aí para ser assumida.
Oi Francine! Achei muito interessante seu post, mas acho que tudo poderia ser facilmente corrigido no Brasil com algumas medidas simples. Sou médico, sou totalmente contra convênios e planos de saúde e sonho com o dia em que o Brasil possa ter todo o sistema de saúde público como o Reino Unido. No Reino Unido todo o sistema é público e excelente (profissionais - muito bem remunerados, hotelaria - hospitais que parecem hotéis e medicina diagnóstica - laboratorial e radiológica de ponta). Como eles conseguem isso? Baixo nível de corrupção no país, sendo assim não ocorre desvio de verba.É incrível como um país tão rico como o Brasil, consegue também ser muito miserável graças à corrupção. O Reino Unido também investe muito na medicina de família e prevenção, pois quanto mais precocemente resolvemos problemas menor será o custo para o sistema. Acontece que no Brasil, parece que todos os piores médicos estão no nível básico de saúde e os melhores em níveis terciários e quaternários. O resultado disso é muitos pacientes apresentando inúmeras complicações e sendo encaminhados a níveis mais complexos e onerosos. Outro ponto leva em consideração os altíssimos impostos cobrados em cima das bebidas alcoólicas e cigarros no Reino Unido. Isso porque que usa os serviços de saúde são principalmente quem têm maus hábitos de vida. No Brasil é muito barato beber e fumar. E tenho certeza que se houvessem impostos mais altos no Brasil em cima desses produtos seria apenas mais um motivo para desvio de verba. O problema do Brasil chama-se corrupção, políticos despreparados e preguiçosos. Com empenho, acredito que a saúde brasileira estaria corrigida em no máximo 10 anos.
Gostei, Thiago. Obrigada pela contribuição! Dê mais ideias! Quais medidas simples poderiam ser adotadas aqui no curto prazo?
Tenho pensado como responder sua pergunta sobre o que poderia ser feito no Brasil. Infelizmente, o mais barato e utopicamente o mais simples é na verdade o mais difícil: por fim a corrupção. Mas como por fim a corrupção em um país que ama a corrupção? Reclamamos dos políticos, mas apenas eles são culpados? Eles são o espelho de nossa população. O brasileiro adora tirar vantagem em tudo, adora um jeitinho, adora arrumar desculpa para conseguir um atestado médico e faltar ao trabalho, etc. Além disso, o brasileiro é um povo que “adora” fazer coisas erradas como jogar lixo pela janela de casa ou do carro, adora jogar bituca de cigarro no chão, mesmo quando há um lixo a 1 metro da pessoa, adora estacionar em vagas de deficientes físicos e idosos, etc. E o pior de tudo, é que assim como os políticos, negamos tudo isso. Não sei se por vergonha, por cinismo, por vaidade ou hipocrisia, mas sempre negamos. Além de tudo isso, adoramos ser cegos. Queremos carnaval, copa do mundo, olimpíadas, micaretas, etc.
Com o fim da corrupção e dos desvios de verbas, haveria verba para tudo. E aumentos de impostou ou impostos extras chegariam ao seu destino.
Um exemplo lindo foi o do Japão com o terremoto e tsunami. Em alguns pouquíssimos dias, todas as estradas foram reconstruídas e limpas, para que os suprimentos chegassem as cidades afetadas. A população se organizava em filas, respeitando mulheres, crianças e idosos, para poder receber água e alimentos racionados, mesmo que soubesse que quando chegasse a sua vez não haveria mais nada. Mesmo assim, respeito total e tumulto zero. Como seria isso no Brasil?
Vou parar de falar de política e diferenças culturais e vou falar praticamente agora. Ao invés do CPMF ou qualquer outro imposto que sempre querem criar para destinar a saúde, por que não aumentar os impostos em cima do cigarro e álcool? Todo o dinheiro seria revertido para a saúde, afinal de contas os maiores usuários do sistema de saúde são justamente os usuários desses produtos pelo vício, doenças associadas (patologias pulmonares, cardiovasculares, endocrinológicas, neurológicas, reprodutoras, neoplásicas, psiquiátricas, gastrintestinais) e acidentes automobilísticos ou mesmo a violência por estar sob efeito de álcool. E digo mais, com o aumento do valor desses produtos muitas pessoas usariam menos, o que torna isso uma medida terapêutica forçada e mesmo preventiva de doenças. Um maço de cigarro deveria custar 20 reais e uma latinha de cerveja 15 reais. Um litro de cachaça 30 reais ( a mais barata).
Os impostos deveriam ser aumentados em cima de produtos supérfluos, ricos em sódio, transgênicos, ricos em gorduras, e deveriam ser reduzidos em alimentos saudáveis, integrais e orgânicos. Isso estimularia o consumo de alimentos mais nutritivos e de melhor qualidade. O objetivo dessa segunda medida não é aumentar o valor da cesta básica, nem mesmo onerar o bolso de ninguém, mas haveria um equilíbrio de tal forma que todos os grupos alimentares estivessem presentes na dieta diária, mas sempre balanceada. Exemplo: arroz integral seria mais barato que o branquinho, frango sem hormônios seria mais barato que frango com hormônios, etc. Haveria incentivos fiscais para produtores de alimentos naturais. Essa é mais uma medida preventiva. Prevenção é muito mais barato que tratar.
Outra medida preventiva, um pouco mais onerosa ao governo, seria incentivar médicos de unidades básicas de saúde com melhores salários. Isso atrairia melhores profissionais ao serviço básico, diagnósticos seriam mais precoces e conseqüentemente menos custo em hospitais que também não seriam tão lotados. O caro em saúde pública é internação. Pacientes internados exigem medicamentos caros, maiores cuidados e muitas vezes procedimentos cirúrgicos. Além do gasto de material: gaze, álcool, soro, etc. Quanto menos pacientes internados, maior a economia de dinheiro público.
Existem soluções para tudo no Brasil o que falta é vontade, competência e honestidade.
Postar um comentário