Cerca de quatro semanas atrás, recebi um
telefonema um tanto sinistro. O marido da faxineira lá de casa, com uma
voz típica de sala de espera de hospital, me avisava que ela estava
doente e não poderia trabalhar naquela semana. Em vez de ficar brava por
de repente me ver sem uma solução imediata para a bagunça e a louça
acumuladas no meu apartamento, como já tinha acontecido outras vezes,
fiquei verdadeiramente preocupada. Talvez por causa da voz fraca do
marido, que por um instante me fez pensar que ela estava morta. Desta
vez não era uma mais uma consulta médica em plena segunda-feira, dia em
que os pronto-socorros estão mais lotados (dizem que a maioria vai ao
médico só para pegar atestado e faltar ao trabalho). Desta vez a Débora
(não é o nome verdadeiro dela, mas vou chamá-la assim aqui na coluna)
estava mesmo doente, de repouso, e nem poderia compensar sua falta vindo
fazer a faxina no dia seguinte. Todas as suas clientes ficariam sem ela
por um tempo. E ela perderia a paga de todos os dias em que ficaria
parada.
A faxina no meu apartamento foi resolvida dois
dias depois, por uma diarista substituta que uma amiga indicou. Mas a
doença da Débora ainda me preocupava. No fim de semana, telefonei para
saber o que ela tinha. Ela me contou que tinha ido a um cardiologista
por causa de uma dor no peito e que um exame acusou colesterol alto.
Opa! Então o problema deveria ser a alimentação, pensei. Eu sabia que
ela não costumava almoçar. Lá em casa, pelo menos, como nunca tenho
almoço (moro sozinha e só faço jantar, em porções pequenas), ela só
beliscava. Uma banana, uma fatia de pão e só. Fiz uma espécie de
entrevista com a Débora pelo telefone. E minha suspeita se confirmou.
Para
começar, a Débora sai de casa cedo pra caramba sem tomar café da manhã.
Em vez de almoçar, belisca. Até chegar em casa, entre 17h30 e 19h,
quando prepara o jantar da família, quase não come nada. O jantar
costuma ser substancioso, com carne vermelha. “Adoro uma picanha”, ela
me disse. Isso quando ela janta, porque em dias de muito cansaço ela vai
para cama praticamente em jejum. Em algumas madrugadas, acorda com
fome. E no dia seguinte, não sei como, tem pique para limpar um
apartamento inteiro, lavar e passar, tomar não sei quantos ônibus e
ainda cuidar do seu filho de quatro anos.
Antes de
entrevistá-la, eu imaginava que ela compensava a falta de almoço com
refeições reforçadas antes de sair de casa e depois do trabalho. Quando
descobri que não era bem assim, fiquei espantada. E fiquei mais
espantada ao ouvir de uma nutricionista que o que acontece com a Débora
acontece com inúmeras diaristas. Será que com a sua não está acontecendo
o mesmo?
Trabalhadores assalariados têm, por direito, um
horário de almoço e alguma ajuda de custo para esse almoço. Em muitas
empresas há o refeitório, em outras o vale-refeição. Aqui na Editora
Globo, por exemplo, há uma nutricionista que decide o cardápio do
restaurante da empresa com base no que ela considera mais saudável e
procura orientar os funcionários na escolha dos alimentos. A Débora não é
assalariada nem trabalha numa empresa com nutricionista. Como diarista,
ela não tem vínculo empregatício com nenhuma de suas clientes. Não é
minha obrigação dar almoço para ela. Mas não posso aceitar que ela deixe
de se alimentar bem enquanto trabalha.
Minha primeira
atitude foi buscar informação. Conversei com a nutricionista Viviane
Laudelino Vieira, do Centro de Referência para a Prevenção e Controle de
Doenças Associadas à Nutrição (CRNUTRI), que fica dentro de uma Unidade
Básica de Saúde em Pinheiros. Ali, moradores e trabalhadores da região
são atendidos em grupo por estudantes do curso de Nutrição da Faculdade
de Saúde Pública da USP. Entre eles, muitas trabalhadoras domésticas.
Segundo Viviane, a maioria vem por recomendação médica por causa dos
mesmos problemas de sempre: colesterol alto, pressão alta, pré-diabetes e
alta taxa de triglicérides. E as causas desses problemas também se
repetem muito. Essas pessoas ficam muitas horas sem se alimentar e
deixam de comer fontes importantes de nutrientes essenciais, além de
exceder em gorduras nocivas e açúcares. E, por causa da correria, não
arrumam tempo para fazer exercícios regularmente.
Essa
combinação é uma bomba para a saúde. Quando a comida é pouca, o
organismo entra em economia de guerra, ou seja, gasta o mínimo de
energia para não pifar até a próxima refeição. Resultado: a pessoa
engorda. Aí tenta emagrecer “fechando a boca”, suspende as refeições
completas, come menos ainda e engorda mais. E, em boa parte dos casos,
só descobre que sua saúde está ameaçada quando faz exames de sangue.
Conheci
três trabalhadoras domésticas que estão participando dos encontros no
CRNUTRI. Maria de Lourdes achava que parar de comer iria reduzir o
tamanho da sua barriga, mas ela só cresceu. Miraci só tinha comido um
pão de queijo com café preto de manhã e mais nada até pelo menos as 15h,
horário em que conversou comigo. Fã de doce de leite e banana, disse
que seria difícil mudar seus hábitos depois de tantos anos deixando a
salada para depois. Pré-diabética, Maria das Graças precisou que o
médico lhe jogasse na cara que estava gorda para começar uma dieta. Diz
que já conseguiu perder um pouco de peso cortando os doces.
A
Débora tem 40 anos de idade e não é gorda. Gosta de salada e detesta
peixe. Ela ainda não passou por uma nutricionista, mas eu já sei que uma
das recomendações que ela irá receber para reduzir seu colesterol será
fazer cinco ou seis refeições equilibradas todos os dias. Ela já voltou
ao trabalho, com algumas novidades. Na última segunda-feira, me disse
que sairia para almoçar em algum restaurante barato perto da minha casa.
Também me disse que pretende trazer frutas e bolachas na bolsa, para
comer ao chegar e no meio da tarde. Como patroa preocupada, tentei
ajudar com incentivos. Dei a ela, de presente, uma bolsa térmica e uma
vasilha com divisórias para ela trazer uma marmita refrigerada de casa.
Assim, ela poderá, ao preparar o jantar, reservar seu almoço do dia
seguinte.
O CRNUTRI atende apenas pessoas que moram ou
trabalham com vínculo empregatício ali na região. Embora talvez não com a
mesma estrutura proporcionada pela parceria com a USP, outras unidades
de saúde municipais devem ter atendimento nutricional gratuito. Não é
obrigação dos patrões, mas me parece que não custa nada bater um papo
com sua trabalhadora doméstica sobre a saúde dela e, se for o caso,
sugerir que ela procure profissionais competentes do seu município que a
ensinem a se alimentar melhor. Com saúde, todo mundo sai ganhando.
(Originalmente publicado em www.epoca.com.br)
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