3 de set. de 2009

A dieta da diarista

Cerca de quatro semanas atrás, recebi um telefonema um tanto sinistro. O marido da faxineira lá de casa, com uma voz típica de sala de espera de hospital, me avisava que ela estava doente e não poderia trabalhar naquela semana. Em vez de ficar brava por de repente me ver sem uma solução imediata para a bagunça e a louça acumuladas no meu apartamento, como já tinha acontecido outras vezes, fiquei verdadeiramente preocupada. Talvez por causa da voz fraca do marido, que por um instante me fez pensar que ela estava morta. Desta vez não era uma mais uma consulta médica em plena segunda-feira, dia em que os pronto-socorros estão mais lotados (dizem que a maioria vai ao médico só para pegar atestado e faltar ao trabalho). Desta vez a Débora (não é o nome verdadeiro dela, mas vou chamá-la assim aqui na coluna) estava mesmo doente, de repouso, e nem poderia compensar sua falta vindo fazer a faxina no dia seguinte. Todas as suas clientes ficariam sem ela por um tempo. E ela perderia a paga de todos os dias em que ficaria parada.

A faxina no meu apartamento foi resolvida dois dias depois, por uma diarista substituta que uma amiga indicou. Mas a doença da Débora ainda me preocupava. No fim de semana, telefonei para saber o que ela tinha. Ela me contou que tinha ido a um cardiologista por causa de uma dor no peito e que um exame acusou colesterol alto. Opa! Então o problema deveria ser a alimentação, pensei. Eu sabia que ela não costumava almoçar. Lá em casa, pelo menos, como nunca tenho almoço (moro sozinha e só faço jantar, em porções pequenas), ela só beliscava. Uma banana, uma fatia de pão e só. Fiz uma espécie de entrevista com a Débora pelo telefone. E minha suspeita se confirmou.

Para começar, a Débora sai de casa cedo pra caramba sem tomar café da manhã. Em vez de almoçar, belisca. Até chegar em casa, entre 17h30 e 19h, quando prepara o jantar da família, quase não come nada. O jantar costuma ser substancioso, com carne vermelha. “Adoro uma picanha”, ela me disse. Isso quando ela janta, porque em dias de muito cansaço ela vai para cama praticamente em jejum. Em algumas madrugadas, acorda com fome. E no dia seguinte, não sei como, tem pique para limpar um apartamento inteiro, lavar e passar, tomar não sei quantos ônibus e ainda cuidar do seu filho de quatro anos.

Antes de entrevistá-la, eu imaginava que ela compensava a falta de almoço com refeições reforçadas antes de sair de casa e depois do trabalho. Quando descobri que não era bem assim, fiquei espantada. E fiquei mais espantada ao ouvir de uma nutricionista que o que acontece com a Débora acontece com inúmeras diaristas. Será que com a sua não está acontecendo o mesmo?

Trabalhadores assalariados têm, por direito, um horário de almoço e alguma ajuda de custo para esse almoço. Em muitas empresas há o refeitório, em outras o vale-refeição. Aqui na Editora Globo, por exemplo, há uma nutricionista que decide o cardápio do restaurante da empresa com base no que ela considera mais saudável e procura orientar os funcionários na escolha dos alimentos. A Débora não é assalariada nem trabalha numa empresa com nutricionista. Como diarista, ela não tem vínculo empregatício com nenhuma de suas clientes. Não é minha obrigação dar almoço para ela. Mas não posso aceitar que ela deixe de se alimentar bem enquanto trabalha.


Minha primeira atitude foi buscar informação. Conversei com a nutricionista Viviane Laudelino Vieira, do Centro de Referência para a Prevenção e Controle de Doenças Associadas à Nutrição (CRNUTRI), que fica dentro de uma Unidade Básica de Saúde em Pinheiros. Ali, moradores e trabalhadores da região são atendidos em grupo por estudantes do curso de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP. Entre eles, muitas trabalhadoras domésticas. Segundo Viviane, a maioria vem por recomendação médica por causa dos mesmos problemas de sempre: colesterol alto, pressão alta, pré-diabetes e alta taxa de triglicérides. E as causas desses problemas também se repetem muito. Essas pessoas ficam muitas horas sem se alimentar e deixam de comer fontes importantes de nutrientes essenciais, além de exceder em gorduras nocivas e açúcares. E, por causa da correria, não arrumam tempo para fazer exercícios regularmente.

Essa combinação é uma bomba para a saúde. Quando a comida é pouca, o organismo entra em economia de guerra, ou seja, gasta o mínimo de energia para não pifar até a próxima refeição. Resultado: a pessoa engorda. Aí tenta emagrecer “fechando a boca”, suspende as refeições completas, come menos ainda e engorda mais. E, em boa parte dos casos, só descobre que sua saúde está ameaçada quando faz exames de sangue.
Conheci três trabalhadoras domésticas que estão participando dos encontros no CRNUTRI. Maria de Lourdes achava que parar de comer iria reduzir o tamanho da sua barriga, mas ela só cresceu. Miraci só tinha comido um pão de queijo com café preto de manhã e mais nada até pelo menos as 15h, horário em que conversou comigo. Fã de doce de leite e banana, disse que seria difícil mudar seus hábitos depois de tantos anos deixando a salada para depois. Pré-diabética, Maria das Graças precisou que o médico lhe jogasse na cara que estava gorda para começar uma dieta. Diz que já conseguiu perder um pouco de peso cortando os doces.

A Débora tem 40 anos de idade e não é gorda. Gosta de salada e detesta peixe. Ela ainda não passou por uma nutricionista, mas eu já sei que uma das recomendações que ela irá receber para reduzir seu colesterol será fazer cinco ou seis refeições equilibradas todos os dias. Ela já voltou ao trabalho, com algumas novidades. Na última segunda-feira, me disse que sairia para almoçar em algum restaurante barato perto da minha casa. Também me disse que pretende trazer frutas e bolachas na bolsa, para comer ao chegar e no meio da tarde. Como patroa preocupada, tentei ajudar com incentivos. Dei a ela, de presente, uma bolsa térmica e uma vasilha com divisórias para ela trazer uma marmita refrigerada de casa. Assim, ela poderá, ao preparar o jantar, reservar seu almoço do dia seguinte.

O CRNUTRI atende apenas pessoas que moram ou trabalham com vínculo empregatício ali na região. Embora talvez não com a mesma estrutura proporcionada pela parceria com a USP, outras unidades de saúde municipais devem ter atendimento nutricional gratuito. Não é obrigação dos patrões, mas me parece que não custa nada bater um papo com sua trabalhadora doméstica sobre a saúde dela e, se for o caso, sugerir que ela procure profissionais competentes do seu município que a ensinem a se alimentar melhor. Com saúde, todo mundo sai ganhando.

(Originalmente publicado em www.epoca.com.br)

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