10 de set. de 2009

Feche os olhos pra comer menos

Sabe aquela brincadeira do “abra a boca e feche os olhos”? Está sendo levada a sério por gente que acredita que o mistério dá mais graça à comida. Você fecha os olhos e aceita o que lhe dão para comer, sem medo e sem preconceito. Dizem que, nessa experiência, é possível descobrir que um alimento antes rejeitado pode ser gostoso. Também dizem que, sem ver a comida, a gente come menos.

A ideia surgiu no Museu do Diálogo de Paris, onde o visitante é levado a conhecer como as pessoas com deficiência visual interagem com o mundo, inclusive na hora de comer. Agora, o Jantar no Escuro é um evento. É uma experiência gastronômica em que os convidados usam vendas e são privados de qualquer contato visual com o que está à mesa, com a proposta de usar os outros sentidos para desejar e saborear a comida. E não comer com os olhos.

Duas jovens psicólogas de São Paulo conheceram o museu parisiense e ficaram encantadas com a possibilidade de provocar autodescobertas em jantares no Brasil. Maria Lyra e Elis Feldman, de apenas 23 anos, acham que vivemos uma “monopolização da visão” que nos priva de sensações importantes. Elas acham que, em vez de comer com os olhos, deveríamos experimentar um movimento mais introspectivo na hora da refeição. E explorar os alimentos de outras formas.

Desde que montaram o Ateliê No Escuro, há pouco mais de um ano, as psicólogas têm surpreendido públicos diversos na capital paulista. Elas não têm um restaurante. De tempos em tempos, preparam um Jantar no Escuro em algum restaurante parceiro, com o chef da casa, ou produzem um jantar sob encomenda na casa de alguém. Nesses eventos, ninguém sabe o que vai ser servido. De olhos vendados, os participantes têm de cheirar e mastigar com calma para descobrir o que estão comendo. Conta-se que todos, de alguma forma, mudam sua percepção sobre a maneira de comer.

A convite do Ateliê, eu jantei no escuro com mais três pessoas. Éramos duas jornalistas, uma psicóloga e um físico. Houve um bate-papo informal ao chegar, na sala de estar, de luzes acesas e identidades expostas. Nenhum de nós sabia qual era o cardápio. Apenas haviam nos garantido que não comeríamos nada que nos fizesse mal (avisamos com antecedência de nossas restrições alimentares, voluntárias ou não). O resto era mistério.

Quando avisaram da cozinha que a comida estava pronta, vestimos nossas vendas e fomos conduzidos pé ante pé para a sala de jantar.

A mudança de perspectiva é repentina. De uma hora para outra, eu não estava mais no controle. Ao pousar minhas mãos sobre os ombros da Elis e caminhar vendada atrás dela, era preciso confiar nela e em tudo que ela dissesse. Paramos ao lado do que seria minha cadeira. Senti a cadeira com as mãos, me sentei e aguardei a próxima instrução.

A partir dali, as mãos e os ouvidos eram nossos guias. “À sua direita, à frente, está a taça em que serviremos o vinho. Ao lado dela, o copo em que serviremos a água”, dizia a voz. Então eu estendi o braço devagar até encontrar a haste de vidro. A taça ainda estava vazia. “Vou servir o vinho”, avisou a voz. Além do som do líquido entornando, eu podia senti-lo pesando na taça entre minhas mãos. Já estava cheia.

“Vou servir a entrada. Sua entrada está servida”, disse a voz. Percorri com as mãos a circunferência do prato pequeno para perceber a dimensão das minhas próximas ações. Tinham-nos sugerido comer com as mãos (muito bem lavadas), para sentir os alimentos com o tato. Aceitei a sugestão e toquei o conteúdo do prato com cuidado. Era uma salada fria. Folhas. Alface. Bolinha áspera. Doce? Melancia! Macio. Mussarela de búfala. Molho. Doce e refrescante. Hortelã! Cada mordida era uma surpresa. Ou uma dúvida, pois nem tudo meu paladar identificava. Lambia os dedos para prolongar o gosto e ter certeza. Tinham nos dito que não era preciso ter vergonha, até porque ninguém estava olhando. Mas comer com as mãos e lamber os dedos nunca me pareceu mais natural e correto do que naquela noite.

Retirada a salada, nos serviram mais dois pratos, um de cada vez, e a sobremesa. Os alimentos tinham sido preparados de modo que fosse possível despedaçá-los sem usar faca e levá-los à boca sem que se perdessem pelo caminho (não havia arroz soltinho, por exemplo). Tínhamos um guardanapo de pano no colo e uma “lavanda” de água morna com rodelas de limão (que percebi pelo cheiro) ao lado esquerdo do prato, para lavar os dedos. Experimentei também usar talheres com o prato mais quente, e descobri que era mais difícil, pois nem sempre a comida vinha junto com o garfo, e também mais barulhento, pois era preciso “varrer” o prato com os talheres para encontrar os pedaços.

Foi no segundo prato que percebi a grande diferença que faz a visão. O aroma chegou antes do prato, me dizendo que serviriam peixe. Mas, ao trazer o primeiro pedaço à boca, duvidei. O sabor era cítrico e adocicado, por causa do molho, mas a consistência ainda era de peixe. Seria peixe mesmo?

A anfitriã Maria Lyra havia me dito que, nessa experiência, não é preciso ver para crer. A intenção era mesmo que ficássemos mais atentos a cada detalhe, percebendo a textura, a maciez ou a crocância, a temperatura, a combinação de sabores, a ambiguidade de cada componente da refeição. Porque assim desfrutaríamos mais do alimento.

Ao final, estávamos todos satisfeitos. E curiosos para saber se tínhamos acertado nos nossos palpites silenciosos durante a mastigação. Errar, não erramos. Mas nos esquecemos do nome de alguns alimentos. Felizmente. Dentro da boca, reconhecíamos as características: suculento, salgado, legume, casca fina, sementes. Que importância tinha chamar-se “abobrinha” uma fatia que aproveitamos em toda a sua complexidade? Tínhamos jantado muito bem e estávamos contentes com cada sensação diferente. Tinham sido muitas.

Mas não tinha sido muita a comida. Quando tiramos as vendas e vimos o jantar completo exposto no aparador, nos surpreendemos com a discrepância entre o que se revelava aos olhos e o que tínhamos sentido. “Foi só isso que eu comi?”, perguntou uma convidada. Talvez, se tivesse visto os pratos antes de comer, ainda estivesse com fome. Mas estava plenamente saciada.

Perguntei a Elis se teria o mesmo efeito comer a comida do dia a dia de olhos vendados, ou se é preciso ganhar um jantar surpresa sem luz de velas para apreciar os alimentos em toda a sua riqueza. Ela me disse que já ouviu falar de gente fechando os olhos até na hora do almoço para sentir melhor o gosto do arroz com feijão.

Pode ser um jeito de comer menos, com mais parcimônia, e não ceder às tentações engordativas que chamam nosso apetite pela aparência. Pode ser um jeito de aprender a gostar de alimentos nutritivos que a gente sempre ignora. Pode ser um motivo para caprichar mais na culinária. Ou pode ser simplesmente uma experiência diferente. Que tal tentar?

(Originalmente publicado em www.epoca.com.br)

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