Obrigar-se a
seguir determinadas ordens e abrir mão de certos prazeres não é sacrifício
coisa nenhuma – desde que seja em nome de recompensas de maior valor
Quero
voltar ao tema das revistas que prometem receitas para “emagrecer sem sacrifício”
ou coisa do gênero. Por que reforçar a ideia de que cuidar de si mesmo é
sacrifício? Afinal, fazer exercício e comer direito é se cuidar, não é? É
assumir para si a responsabilidade de promover o pleno funcionamento do corpo
em vez de delegar a quem quer que seja (à indústria de alimentos, às clínicas
de estética, aos médicos, aos shakes milagrosos e às próprias revistas) a
incumbência de determinar o que cada um deve ou não fazer com as próprias células.
Zelar pelo próprio bem-estar não deveria ser encarado como sacrifício. Como
obrigação, sim. Mas obrigação e sacrifício não são sinônimos.
Todo
tipo de promessa do tipo “faça isso e seus problemas acabaram” levam à falsa
ideia de que entregar ao outro a tarefa de resolver o problema por você é um
alívio. Os médicos que tratam obesos costumam observar que os pacientes chegam
ao consultório com pedidos do tipo “emagreça-me”. Acontece que o problema de
quem está querendo “ser emagrecido” é justamente esse: acreditar que a solução
vem de fora. Mas a solução vem de dentro e se chama disciplina.
Disciplina
no sentido de decidir cuidar de si mesmo e estabelecer para si mesmo regras de
conduta. Foi o que fiz anos atrás, depois de ter lido um bocado de matérias de
revista, visto inúmeros programas de TV sobre alimentação e saúde e entendido
os conselhos que recebi da família desde a infância. Quando me vi crescidinha o
bastante para poder dizer que era dona do meu nariz, me vi também crescidinha o
bastante para ser dona da minha composição corporal, do meu colesterol, da
minha glicemia e de todos os indicadores de saúde que eu pudesse controlar por
meio do meu comportamento.
Esse
controle tornou-se tão importante para mim que fiquei um tanto militaresca. Pelo
menos com relação ao que posso fazer pelo meu corpo, trato-me quase como um
soldado. Imponho-me horários e rotinas. Obrigo-me a ir à academia determinados
dias toda semana. Restrinjo meus prazeres gastronômicos. Obedeço a regras
escolhidas por mim para montar todas as refeições. Sigo orientações rígidas
(também definidas por mim) nas compras de supermercado. Eu diria que organizo
todas as minhas atividades em função da minha saúde. Mas, para mim, isso não é
sacrifício. É poder.
Quando
me obrigo a comer várias frutas todos os dias, sei que estou trazendo benefícios
para minha digestão e me alimentando de boas fontes de açúcar. Sei que, com
isso, contribuo para um bom metabolismo energético e controlo meu peso
corporal. Portanto, ganho poderes sobre minha nutrição. E eu amo frutas. É um
prazer ter de comer tantas.
Quando
restrinjo o consumo de chocolate a dois quadradinhos na sobremesa, evito o
excesso de açúcar e gordura no meu sangue e me dou o poder de ter saúde
suficiente para comer chocolate sempre.
Quando
me obrigo a fazer exercícios pesados, semana após semana, ano após ano, sei que
estou evitando inúmeras doenças, preparando meu aparelho locomotor para
atividades necessárias e agradáveis do meu dia a dia e prevenindo efeitos
horrorosos do envelhecimento. Eu tenho pavor de um dia não poder me mexer
direito, e os exercícios (se bem feitos) me dão o poder de me mexer direito por
muitos anos. Além disso, o esforço desenha minha silhueta com resultados
satisfatórios. Logo, fazer exercícios pesados também me dá o poder de não ser
flácida.
Quando
vou para a cama antes da minissérie e da balada e acordo pelo menos sete horas
depois, sei que estou permitindo que meu corpo reconstrua o que o exercício
destruiu (é pra isso que ele serve: para destruir e promover reconstruções) e
normalize todos os processos. Ao dormir bem e recusar certos lazeres, me dou o
poder de acordar mais pronta para os dias seguintes.
Por
mais que eu deixe de curtir coisas boas em nome das regras que adotei para mim,
não encaro nada disso como sacrifício. Porque as coisas boas que deixei para
trás não são melhores, no longo prazo, que aquelas que estou garantindo para
mim por meio da disciplina. O prazer de comer porções maiores de chocolate não substituiria
o meu prazer de estar em forma. Para mim, é assim. Foi a escolha que fiz. E é um
alívio ter minha saúde sob controle. E me acostumei tanto a entendê-la como
responsabilidade minha que, quando pego um resfriado, me sinto culpada.
Encontrei
eco nesses pensamentos lendo o livro recém-lançado da Marília Coutinho, Estética e Saúde (Phorte Editora, 2011).
A Marília é, entre outras coisas, uma pensadora e pesquisadora das relações do
corpo com a saúde (mental, inclusive). Campeã de levantamento de peso, ela
encontrou no esporte motivos muito fortes para a disciplina. Afinal, para
erguer as cargas que ela levanta, é preciso ter uma alimentação muito regrada,
dormir bem e se concentrar inteiramente nos movimentos. Mas o livro não trata
do levantamento de peso, e sim do quanto a sociedade tende a nos alienar de
nosso corpo, ao nos fazer crer que o corpo pode ser terceirizado. Para a
Marília, é essa alienação que permite que tanta gente espere “milagres” ou
busque “soluções” tão externas (como lipoaspiração, cirurgias de redução do
estômago e outras intervenções agressivas) para problemas que só podem ser
resolvidos de fato de dentro para fora.
Eu
e a Marília (se bem a entendi) acreditamos que, uma vez que a gente assume a
responsabilidade sobre o próprio corpo (voltando a integrá-lo, como ela diz) e
adota a disciplina necessária para manter a saúde sob controle, a gente se
torna automaticamente imune a todo tipo de interferência. Funciona como uma
blindagem. À publicidade, por exemplo. Não tem mais como acreditar cegamente na
propaganda do alimento XYZ se você souber direitinho que tipo de alimento vai
te fazer bem de verdade. A disciplina também pode blindar contra os cardápios
desequilibrados nos restaurantes: eu quase nem enxergo a parte onde não há vegetais. E também não
restarão mais desculpas. A partir do momento em que você é o responsável, não
cabem mais frases bobinhas do tipo “mas é light!”. Porque você não terá mais
falsos aliados na indústria da mentira. A ingenuidade vai toda embora.
Então
a famosa frase do tio do Homem-Aranha (“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”)
pode ser invertida. Ser dono do próprio nariz e da própria composição corporal pode
ser uma responsabilidade e tanto, que envolve decisões importantes ao longo da
vida (leia também Negociar é preciso). Mas o poder quem vem junto é tão
compensador que, uma vez experimentado, não dá mais pra viver sem.
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