Este post foi publicado originalmente na minha coluna na Época online em maio de 2010, com o título Comida maquiada. Republico-o aqui para fazer uma provocação e ao mesmo tempo um convite. Quero retomar minhas análises de rótulos de
alimentos e estou aceitando sugestões. Quais são suas dúvidas na hora
de comprar alimentos embalados? Mande para cá suas perguntas, que
tratarei de ir atrás de respostas. E assim podemos ir montando uma lista das
mentiras que os rótulos contam. Acho que vai ser divertido.
Está rolando uma discussão quente nos Estados Unidos sobre o tipo de promessa que tem aparecido na embalagem de certos alimentos. No afã de ganhar o apreço dos consumidores interessados em saúde e em emagrecimento, alguns fabricantes lançaram mão de estratégias não muito louváveis na hora de rotular seus produtos. Os jornais americanos mais importantes já abordaram o tema.
Dezessete cartas públicas foram publicadas pelo FDA, a agência que controla o setor de alimentos e bebidas nos EUA, endereçadas a empresas que haviam cometido deslizes em suas embalagens. Um dos problemas que aparecem nas cartas tem a ver com a frase “sem gordura trans”, muito comum também em produtos alimentícios no mercado brasileiro. A gafe é que essas empresas estavam se aproveitando da ausência de gordura trans em seus produtos para vendê-los como se fossem saudáveis, sem avisar ao consumidor que os mesmos produtos tinham quantidades altas de gordura saturada. O editorial do New York Times do dia 17 de março, baseado nesses fatos, pedia “rótulos mais honestos”.
A conhecida nutricionista Marion Nestle se dedica há anos a monitorar como a indústria de alimentos consegue convencer o consumidor das coisas erradas. Ela mantém um blog em que essa discussão é constante. Por ali dá para saber o que o mundo está propondo para melhorar a comunicação das empresas com os consumidores no sentido de permitir que estes entendam o que estão comprando – ou deixando de comprar. Num post de 28 de fevereiro, Marion (cujo sobrenome não tem acento gráfico e que não tem nenhuma ligação com a multinacional Nestlé) diz que as alegações de saúde (frases como a declarada ausência de gordura trans ou a que promete melhorar o funcionamento do seu intestino) são de suma importância para os fabricantes de alimentos. Ela conta que a EFSA, a agência europeia de controle dos alimentos, acumulava 44 mil pedidos de inclusão de alegações de saúde em produtos alimentícios, e que muitas não são aceitas.
Os fabricantes querem avisar em suas embalagens que seus produtos fazem bem à saúde. Querem destacar seu poder antioxidante, sua propriedade funcional, sua riqueza em vitaminas, seu baixo teor de açúcares. O problema é que muitos querem fazer alegações que não são verdadeiras, ou que camuflam informações mais importantes.
O papel das agências regulatórias é estabelecer alguns parâmetros para a fabricação e a rotulagem e analisar pedidos extraordinários. Segundo o blog de Marion, a alegação sobre a propriedade antioxidante de um cereal vendido nos Estados Unidos passou pelo crivo da agência americana, mas se fosse apresentado à agência europeia teria sido vetada por falta de evidências científicas que sustentem a alegação.
No Brasil, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) é o órgão responsável por publicar normas de fabricação e rotulagem de alimentos. Mas não todos. Alguns, como os laticínios, respondem às normas do Ministério da Agricultura. É um pouco confuso, eu diria. A Anvisa cuida das resoluções e portarias, mas não faz toda a fiscalização. Quem supostamente verifica o que sai das fábricas são as vigilâncias sanitárias estaduais e municipais. Nesse sistema descentralizado, boa parte dos problemas na rotulagem dos alimentos acaba sobrando para os órgãos de defesa do consumidor.
Na última década, nossa legislação de alimentos melhorou muito e nos protegeu de alguns absurdos que ainda acontecem nos Estados Unidos, mas ninguém ousa dizer que ela está perfeita. A parte ruim é que parece não ter surgido por enquanto nenhuma proposta melhor do que esse modelo de rótulo que temos hoje, incompreensível para uma parte considerável dos brasileiros.
O modelo atual ainda permite alguns enganos porque as informações mais importantes são as que vêm apresentadas na forma de números e percentuais, uma linguagem ainda muito rebuscada para a maioria. As informações apresentadas numa linguagem mais simples são frequentemente as que não revelam toda a verdade. Numa passeada rápida num supermercado, encontrei quatro exemplos de embalagens que podem ser mal interpretadas pelo consumidor.
1. Feijoada pronta “sem conservantes”. A ausência de conservantes pode ser entendida como característica de um produto saudável, mas a verdade, verificável na tabela nutricional no verso da embalagem, é que 400 gramas do produto contêm 1433 miligramas de sódio, ou 60% da quantidade recomendada para um dia inteiro. É muito sódio para uma refeição só. O consumo excessivo de sódio, que vem do sal, é um fator de risco importante para a hipertensão.
2. Cereal matinal “rico em cálcio e ferro”. A adição de minerais pode ser um atrativo, mas não se pode deixar de verificar o teor de açúcares, que aliás aparece destacado na parte da frente da embalagem: 11 gramas para cada 30 gramas de cereal. Daria pra ser menos, né? Um outro cereal na mesma prateleira continha 4,6 gramas de açúcar em 30 gramas de produto. Melhor, não?
3. Nuggets de frango congelados, “fonte de vitamina E, fonte de ferro, fonte de proteínas”. O fato de o congelado ter proteínas e minerais não significa que não tenha gordura trans. A tabela nutricional revela: 1,2 gramas para cada 130 g de produto.
4. Barra de cereais/ “nutrição para a mulher”/ beleza/ com colágeno . A combinação dessas palavras, numa embalagem cor de rosa, pode levar a consumidora a acreditar que o colágeno do produto vai esticar sua pele a ponto de ela ficar mais bonita. Mas não vai. Ela não estará comprando um tratamento de beleza, mas apenas um quitute com flocos de arroz, chocolate e castanhas com 87 calorias e 3,4 gramas de gorduras totais em 22 gramas de produto. Segundo o fabricante, como não há alegação de propriedade funcional na embalagem, não foi necessário comprovar cientificamente que o colágeno adicionado à barrinha tem algum efeito sobre a elasticidade da pele. Tampouco é proibido colocar ali, estrategicamente, a palavra “beleza”.
Enquanto o mundo discute qual seria a melhor maneira de rotular os alimentos ou de incentivar ou forçar as empresas a colaborar na busca dos consumidores por opções mais saudáveis, só nos resta dobrar a atenção. Vale parar para pensar, na hora da compra, que o que está em letras grandes é o que dá vontade de comprar (portanto o que rende boas vendas para o fabricante) e o que está em letras pequenas talvez seja o que poderia atrapalhar as vendas. Ou seja, o motivo para não comprar.
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