14 de fev. de 2012

Comida ou truque ilusionista?

Com a ajuda do trabalho de gente talentosa, talvez como você, a indústria vicia o mundo em junk food



Numa ótima reportagem do programa 60 Minutos, da americana CBS News, um jornalista veterano vai conhecer de perto a indústria de aromas e sabores aplicados em alimentos processados. As imagens mostram os inúmeros vidrinhos de "perfume comestível" desenvolvidos em laboratório por pesquisadores especializados em farejar e copiar aromas encontrados em frutas, carnes e outros alimentos da natureza.

O jornalista se impressiona com a capacidade desses aromas de enganar nossos sentidos. Os cheiros são deliciosos, o sabor é explosivo. Muito mais até que a fruta recém-colhida da árvore. Nós saboreamos os produtos feitos pela indústria, por exemplo uma lasanha de frango, e acreditamos que estamos comendo mesmo um frango caipira defumado em alguma fazenda, quando na verdade nossa língua está sendo estimulada por uma combinação de perfumes que imita com enorme competência o cheiro do frango verdadeiro. E, quando comemos o frango verdadeiro, ele pode parecer bem mais sem graça. O que a indústria está fazendo é comida ou truque ilusionista?

O jornalista pergunta a um dos perfumistas talentosos dessa indústria de ilusões alimentícias se ele está criando alimentos viciantes, para que as pessoas fiquem hiperestimuladas pela explosão de sabor e queiram repetir esse prazer na boca inúmeras vezes. O perfumista diz que sim, está criando uma espécie de vício, que é para aumentar as vendas. Lá pelo décimo segundo minuto do vídeo, o jornalista questiona um empresário do setor. Pergunta se seu negócio não estaria contribuindo para o enorme problema da obesidade. E o empresário se esquiva, diz que essa é outra questão, e completa com mais ou menos o seguinte: "O que estamos criando não é um desejo de consumir mais, e sim uma memória inesquecível do que foi bom."

O que acho curioso e um tanto assustador não é tanto a ganância do empresário, já esperada, mas o senso de inocência do perfumista. Ele é provavelmente um cientista que estudou em ótimas universidades e é muito bem pago pela indústria. E parece não se incomodar com a hipótese de seu competente trabalho ser parcialmente culpado pelos vícios alimentares e pela obesidade. Afinal, não fosse o talento dele e de seus colegas de profissão, não fosse a prontidão desses cientistas para aceitar os salários generosos da indústria alimentícia e trabalhar para ela, provavelmente não teríamos nos supermercados essa quantidade de produtos recheados de sabores viciantes. E, em última análise, não haveria tanta gente consumindo esses produtos no lugar de alimentos frescos vendidos na feira.

Eu me pergunto até que ponto os problemas do mundo não são sustentados por gente como nós, que pensa trabalhar honestamente em troca de um salário, sem pensar no resultado final do seu trabalho sobre a vida das pessoas.

Um outro vídeo pode ilustrar melhor o que quero dizer. É um filme francês antigo, legendado em espanhol, que apresenta um experimento que teria sido feito para tentar explicar o holocausto. Dois voluntários são chamados para um estudo sobre a memória, em que um deles levará choques cada vez que errar a resposta de um jogo, e o outro comandará a máquina que envia as cargas elétricas, cada vez mais fortes. Para nosso espanto, os voluntários aceitam o experimento, e logo há um homem sendo torturado na cadeira elétrica.

Mas depois descobrimos que é tudo mentira. O rapaz da cadeira elétrica não é voluntário; faz parte da equipe de pesquisadores. A cadeira não dá choques de verdade. E o estudo não tem nada a ver com a memória. Eles querem é estudar a obediência. E fazem isso observando até que ponto o moço da mesa de controle (que acredita estar mesmo dando choques no outro) aceita torturar um inocente só porque um homem de avental branco mandou. Bem, o experimento teria sido repetido com vários voluntários, e 63% deles teriam chegado a 450 volts.

O diálogo final entre pesquisador-chefe e um fiscal (no minuto 6'49" da parte 2) traz a reflexão mais valiosa desse trecho do filme. O fiscal pergunta:

-- No caso de um genocídio, quando o tirano decide matar seis milhões de pessoas, ele precisa de pelo menos um milhão de cúmplices. Como consegue fazê-los obedecer?"

E o pesquisador explica:

-- Dividindo a responsabilidade. Um tirano precisa de um milhão de pequenos tiranos, funcionários que executem tarefas triviais, sem remorso, e que não se deem conta de que são a milionésima parte do ato final."

No meu ver, exatamente como faz o perfumista.


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