Informar
o consumidor por meio do rótulo dos produtos não é tarefa simples. Envolve
legisladores, agências reguladoras, interesses econômicos, muito dinheiro
e influências políticas imperceptíveis. Como nem sempre o que é melhor para as
pessoas é melhor para as empresas, o consumidor pode acabar sendo desinformado.
Isso porque ainda não existe nenhuma iniciativa, pelo menos aqui no Brasil, que
faça as empresas informarem na embalagem, de maneira clara e objetiva, a
quantidade de algumas substâncias e os
males que fazem à saúde.
Há
cerca de seis anos, a Food Standards Agency (FSA), agência reguladora de
alimentos do Reino Unido, apareceu com uma proposta que parte do mundo aplaudiu.
Ela sugeria que o rótulo de produtos alimentícios exibisse um esquema gráfico bastante
simples, baseado nas cores do semáforo, informando se os teores de açúcar,
sódio e gordura nos alimentos industrializados
eram altos (vermelho), médios (amarelo) ou baixos (verde), a fim
de facilitar escolhas mais saudáveis. Profissionais de saúde e entidades de
defesa do consumidor acharam a ideia ótima, e algumas empresas britânicas
abraçaram a causa, usando o esquema – chamado de Traffic Light Labelling
(Semáforo Nutricional) – em suas embalagens. O resto do mundo observava atento.
Diversas
pesquisas foram feitas e os consumidores britânicos pareciam aprovar a
novidade. Tudo aparentemente ia tão bem, que a União Europeia resolveu fazer
uma votação para decidir se todos os seus países membros adotariam o modelo. A
aprovação era tida como certa. Mas em junho de 2010, o placar virou. Numa
derrota que surpreendeu a opinião pública, a proposta foi derrubada pelo
parlamento europeu.
A
“culpa” foi do lobby. As grandes corporações do setor de alimentos haviam
investido pesado numa campanha de promoção de outro esquema de rotulagem
nutricional, conhecido como VDR (Valor Diário de Referência), e conseguiram
mudar a opinião dos congressistas. Segundo a Corporate Europe
Observatory, uma ONG da Bélgica que monitora o lobby empresarial na Europa,
cerca de 1 bilhão teria sido gasto na estratégia. Embora a Confederação da
Indústria de Alimentos e Bebidas da União Europeia (CIAA) não tenha confirmado essa
cifra, documentos da entidade teriam revelado o
investimento de pelo menos 671 mil na promoção do VDR. Para eles valeu a pena,
pois esse modelo está hoje regulamentado na Europa.
A
Nestlé, que já usava o VDR no mercado europeu desde pelo menos 2008, se declara
contra o semáforo “ou outros esquemas simplistas baseados na divisão errônea
entre ‘bons produtos e produtos ruins’ porque focam apenas nos aspectos
negativos dos nutrientes e não oferecem informações factuais”. Ela
defende ainda que o VDR “dá aos consumidores a oportunidade de avaliar o papel
de um produto na dieta diária”. Para a Kellogg’s, o VDR “é a melhor opção
para informar o consumidor de que forma um produto é incorporado a sua dieta
inteira, em vez de uma análise parcial”.
No
Brasil, onde o mercado de alimentos é dominado pelas mesmas multinacionais que atuam na Europa, nos
Estados Unidos e no resto do mundo,
a entidade representativa do setor também se posiciona contra o semáforo. Em
nota para a Revista do Idec, a Associação Brasileira das Indústrias
da Alimentação (Abia) disse que o semáforo nutricional “em vez de informar ou
educar, pode confundir o consumidor, culminando em uma alimentação inadequada”,
e que sua “simples inserção [nas embalagens] em nada contribui para a escolha
dos produtos”.
VDR x SEMÁFORO
Tanto
o VDR quanto o semáforo são esquemas simplificados de rotulagem nutricional
criados para estampar a parte da frente da embalagem – aquela que
o consumidor vê primeiro na prateleira –, de modo que a decisão de comprar ou
não o produto seja rápida, sem contorcionismos para decifrar
a
tabela nutricional. Segundo pesquisas feitas na Europa, os consumidores acham o
semáforo mais simples de usar. Uma revisão científica publicada este
ano na revista internacional Public Health Nutrition mostrou que o VDR é
confuso, devido aos percentuais, e poucas pessoas o consideram útil. Mas,
se combinado com as cores do semáforo, pode resultar num sistema funcional.
Então
por que tantas empresas preferem o VDR? Há quem acredite que é justamente por
ser difícil de entender. Ou seja, seria mais interessante para os fabricantes
que o consumidor continuasse perdido no mar de informações nutricionais, pois
assim não deixaria de comprar os produtos não saudáveis, que
geralmente são os mais lucrativos. Para a americana Marion Nestle, professora
da Universidade de Nova York, blogueira e autora de vários livros sobre
a política de alimentos nos Estados Unidos
(e cujo sobrenome não tem nenhuma relação com a marca de alimentos), o
consumidor tende a evitar produtos
com sinal vermelho – o que significaria grandes perdas em vendas. Mas serão
esses os critérios corretos para definir um padrão para a rotulagem? “Os
governos têm de decidir o que é mais importante: informar a sociedade e
promover a saúde pública ou apoiar os interesses econômicos de empresas de
alimentos”, afirma Marion.
Na
contramão da campanha do contra, algumas marcas do varejo europeias usam e
promovem o semáforo, de olho numa aparente mudança de comportamento do
consumidor. A Sainsbury’s, terceira maior rede de supermercados
do Reino Unido, adotou, em 2005, um sistema com cores
e
continua apostando em seu sucesso, com base no aumento das vendas de produtos
com sinal verde. Em agosto deste ano, a Tesco, concorrente número um da Sainsbury’s,
que até então usava o VDR, viu-se obrigada a atender à pressão dos clientes e também
implantou um sistema misto, que combina as cores do semáforo com as
recomendações diárias.
Nesse
cenário, as empresas acabam se adaptando às pressões em nome da concorrência.
Mas isso não significa que o consumidor saia ganhando. Na
opinião do médico José Augusto Taddei, professor da Universidade Federal
de São Paulo e coautor de um dos poucos estudos sobre o tema
feitos
no Brasil, o semáforo não é o único nem necessariamente o melhor modelo
de rotulagem simplificada, e certamente pode ser aprimorado, mas é
importante que se adote um modelo único para todo o mercado. “Se cada empresa
rotular como quiser, será como tentar ensinar dez abecedários à
população”, ele critica.
TENTATIVAS DE PADRONIZAÇÃO
Nos
Estados Unidos, onde tanto a indústria quanto o varejo permanecem livres
para criar seus próprios esquemas de rotulagem simplificada, o
governo anunciou, em 2010, a intenção de padronizar a rotulagem frontal.
A expectativa do governo era aprovar algo parecido com o Guiding Stars, um selo
que dá uma, duas ou três estrelas ao alimento conforme os critérios
oficiais de saúde. Isso seria feito com base em novas pesquisas acadêmicas.
Mas as grandes marcas se adiantaram e, juntas, apresentaram o
Facts Up Front, bem mais parecido com o VDR do que com o Guiding Stars. Em
tese, a imposição de um modelo único pelo governo americano eliminaria
das embalagens todos os modelos criados voluntariamente pela indústria
e pelo varejo. Mas o diretor da empresa que criou o Guiding Stars,
John Eldredge, duvida que isso vá acontecer tão cedo. “Os interesses empresariais
têm uma força de lobby poderosa em Washington, e o FDA [agência
americana que regula o setor de alimentos] tem outras questões prioritárias
para lidar”, diz.
Se
nos países desenvolvidos a padronização da rotulagem ainda vai demorar,
no Brasil a tendência é que a mesma indefinição se arraste até que
o resto do mundo chegue a um consenso. As normas brasileiras para o
rótulo são decididas em conjunto com os demais países do Mercosul e com
base no Codex Alimentarius, um acordo internacional que estabelece parâmetros
para tudo que se refere ao mercado de alimentos. Segundo a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que se andou dizendo
nas últimas reuniões desses grupos é que nada será decidido antes que
novas pesquisas esclareçam o que é melhor para o consumidor.
Para
Antonia Aquino, gerente de produtos especiais da Anvisa, o semáforo nutricional
ainda gera muitas dúvidas. “Dependendo do critério escolhido, por
exemplo, o leite poderia ser considerado um alimento com alto
teor de gordura saturada e ter seu consumo desestimulado. Entretanto,
sabemos
que esse alimento é uma importante fonte de proteínas e cálcio”, destaca.
Considera-se
também que o semáforo nutricional foi feito para a população europeia
e que seria necessário fazer pesquisas com a população brasileira, que
tem características diferentes. Mas, até o momento, estudos desse tipo no
Brasil são uma raridade. A Anvisa admite que “esse é um aspecto que pode
dificultar consideravelmente a implementação de inovações no modelo de
rotulagem nutricional no Brasil”. Além desse obstáculo, há a própria legislação atual,
que não obriga as empresas a declarar a quantidade de açúcar usada nos
produtos, o que inviabilizaria a plena aplicação do semáforo ou de outras
rotulagens frontais. A Anvisa diz já ter
solicitado ao Mercosul a inclusão dessa norma.
Para
o Idec, diante das controvérsias sobre o tema e dificuldades de implementação
no Brasil, não podemos desanimar, muito menos aguardar providências
externas. “O governo brasileiro pode e deve priorizar esse
debate no Codex Alimentarius, e ter um papel determinante para que
medidas em prol da adequada informação ao consumidor sejam adotadas.
São necessárias vontade política e coragem para enfrentar fortes
interesses econômicos envolvidos nessa questão. Por isso, a pressão
da
sociedade civil é fundamental para impulsionar esse processo”, acredita
Mariana Ferraz, advogada do Idec e conselheira titular do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar (Consea).
Além
de facilitar a escolha por alimentos saudáveis, os esquemas simplificados também
têm servido para provocar mudanças na formulação dos produtos alimentícios.
Segundo a revisão científica publicada na Public Health Nutrition,
alguns estudos mostram que mesmo os modelos que o consumidor não
entende direito podem servir de incentivo para os fabricantes melhorarem o
perfil nutricional de seus produtos. O artigo diz que na Nova Zelândia a
introdução no mercado de um selo que identificava os produtos mais saudáveis
levou a indústria de alimentos a eliminar, em um ano, 33 toneladas de sal de
suas linhas de montagem.
Para
Christina Roberto, pesquisadora do Rudd Center for Food Policy and
Obesity da Universidade Yale (EUA) e coautora da revisão citada anteriormente,
é importante que os rótulos ajudem a indústria a mudar seus
produtos. Mas diz que ainda não há pesquisas suficientes para afirmar com
certeza qual é o melhor modelo de rotulagem simplificada para o consumidor.
A
dúvida é importante. Num artigo de 2011 publicado no Journal of Hunger
& Environmental Nutrition, o nutricionista Andy Bellatti e a advogada Michele
Simon, ambos blogueiros, lembram que não há estudos suficientes confirmando que
o consumidor entenderá melhor os rótulos frontais do que a tabela completa e sugerem
que eles podem ser apenas mais um instrumento de marketing endossado pelos
governos.
(Texto originalmente publicado na Revista do Idec de dezembro de 2012.)
3 comentários:
Excelente material e muito boa atitude de utilidade pública com a saúde. Sucesso!
Francine, gostei muito do que escreveu sobre o semáforo nutricional. Sou nutricionista e acho que devemos ser mais críticos em relação a isso.
Obrigada, meninas.
Minha pesquisa no mestrado é justamente sobre a rotulagem. Estou investigando formatos mais claros e completos, que realmente funcionem como ferramenta para escolhas informadas e saudáveis. Tomara que eu chegue a boas respostas!
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