E então, depois de duas décadas de
tentativas, o governo americano desistiu de usar o símbolo da pirâmide
alimentar para orientar a dieta da população. E o substituiu por uma figura
mais simples, mais fácil de entender, acreditando que, agora sim, os obesos
americanos vão conseguir encher um prato de comida sem errar. O recado parece
ser mais ou menos o seguinte: ‘tá bom, a gente admite que não estava orientando
vocês coisa nenhuma, e que passamos os últimos vinte anos tentando conciliar os
interesses da agroindústria com nossa obrigação de zelar pela saúde pública.
Não deu certo. Desculpem. Agora tentem se virar sozinhos com esse desenho
novo’.
Vamos à pirâmide. A versão de 1992,
parecida com aquela que eu estudei nos livros da escola, tinha quatro camadas.
Na primeira, a da base, portanto mais larga que as demais, situavam-se os
alimentos ricos em carboidratos e vindos do planeta dos cereais, como pães,
macarrão, arroz e... bolachas cream cracker. Tudo misturado, como se fossem
realmente pertencentes a um mesmo grupo, unido e coeso. Nada se dizia sobre pão
branco ser equivalente a chocolate em matéria de índice glicêmico nem sobre as
divergências existenciais entre o arroz integral e o macarrão instantâneo.
Vistos assim, como o grupo alimentar que todo mundo deveria consumir em maior
quantidade, até podia parecer que comer miojo, risoto ou Ráris cozido com
brócolis dava na mesma.
A segunda camada mostrava lado a lado, mas
separados, como grupos alimentares irmãos, as hortaliças e as frutas. Isso
significava que todo mundo deveria consumir quase tantas frutas e hortaliças
quanto arroz. Mas não estava escrito que esses alimentos só pertenceriam a essa
camada da pirâmide enquanto estivessem crus ou isolados de outros ingredientes.
Alguém poderia pensar que pêssego em calda era fruta e podia ser consumido sem
grandes preocupações. Ou que barrinha de cereal com gosto de morango era uma
refeição saudabilíssima. A menos que percebesse que a pirâmide só podia ser
levada ao pé da letra quando se tratasse de alimentos crus.
O problema é justamente esse: não dava para
usar a pirâmide exatamente como ela era, simplesmente porque os alimentos que
as pessoas consomem não vêm isolados daquela forma. A gente come tudo misturado,
preparado, temperado. Mesmo quando a comida é feita em casa.
Sempre me perguntei em que parte da
pirâmide se situaria uma lasanha. Ela tem massa a base de farinha de trigo
refinada (fonte de carboidrato com alto índice glicêmico e que não é fonte de
fibras), presunto (embutido de carne de porco, com excesso de sódio e bastante
gordura saturada), queijo (do grupo dos laticínios, é fonte de cálcio mas tem
bastante gordura saturada e também bastante sódio) e, dependendo da receita,
também carne moída (mais gordura) e molho de tomate (se for natural, é rico em
licopeno e outros nutrientes; se for enlatado, costuma ter mais sódio que o
desejado). Onde ela entra na pirâmide? Não sei exatamente. Mas acho que não
deveria ser na base da pirâmide, pois não é algo inofensivo nem supernutritivo.
Agora, no lugar da pirâmide de quatro
camadas, que foi reformulada há alguns anos, incluindo a atividade física ao
lado das dicas de alimentação, entrou uma figura redonda que representa um
prato de comida e se chama My Plate. Ele também é dividido em quatro. Metade
dele é preenchido com vegetais (hortaliças e frutas) e a outra metade tem
grãos, preferencialmente integrais, e proteínas. Por ‘proteínas’ eles querem
dizer carnes, frango, peixes e ovos. Os laticínios aparecem num copo ao lado do
prato, como se fosse o leitinho do bandejão da faculdade.
Ficou mais fácil pra você? Agora todas as
suas dúvidas sobre alimentação foram sanadas? Nunca mais vai ter dúvidas
durante as compras no supermercado, nem diante de um cardápio na praça de
alimentação? Vai poder jogar fora todas as revistas com dicas de dieta porque a
partir de hoje você sabe montar um prato de comida conforme as grandes leis
universais da nutrição? Ou está achando que isso tudo é só pra Michelle Obama fingir
que está conseguindo mudar alguma coisa com sua campanha Let’s Move?
Eu não quero ser pessimista. Simpatizo com
a Michelle e torço daqui para que a campanha dela nos leve mesmo a algum lugar.
Só que continuo não sabendo onde a lasanha entra nesse prato. A lasanha e toda
a infinidade de produtos prontos para o consumo que os americanos aprenderam a
consumir e estão exportando para o resto do mundo. Suco em caixinha é fruta?
Sanduíche de máquina é grão com proteína? Não. Nossa alimentação está complexa e
confusa demais para ser representada por um círculo, uma pirâmide ou qualquer
outro desenho simplista. Por isso acho que não dá mais pra fingir que esse tipo
de campanha possa mudar o que precisa ser mudado.
No passado, uma das versões da pirâmide foi
atacada pelos produtores de carne, pois ousou recomendar que as pessoas
comessem menos carne. Isso iria prejudicar o negócio deles, oras bolas. Acuado,
o governo americano trocou a recomendação alarmista por “coma carnes magras”.
Os laticínios também foram protegidos. Apesar das alergias, da intolerância à
lactose e da presença de cálcio em vegetais, o leite e os queijos permaneceram
intocáveis na pirâmide e no prato.
Com o My Plate, o governo americano não
ousou recomendar o que atrapalharia o mercado de alimentos. Não esclareceu que
a população americana só poderá reverter seus índices de obesidade a partir do
momento em que reduzir drasticamente o consumo de alimentos industrializados,
que hoje está em torno de 70% de tudo que eles comem. Não deixou claro que
bebidas adoçadas são quase a mesma coisa que açúcar puro. Nem ameaçou a
indústria com medidas impopulares.
Quem quiser entender o My Plate em detalhes
deve entrar no site do USDA (o ministério da agricultura deles) e conferir as
dicas referentes aos alimentos processados. Mas aí já não dá para contar com
tanta simplicidade quanto o símbolo do prato promete, pois as dicas incluem
examinar cuidadosamente os rótulos, comparar números de tabelas nutricionais e
fazer contas. Ou seja, aprender de verdade sobre nutrição e não depender de
desenho nenhum, nem de políticas públicas.
3 comentários:
Oi Francine,
A história do My Plate tem mais detalhes: a versão anterior da pirâmide (MyPyramid?) foi tirada do ar porque um grupo de médicos processou o governo americano depois que veio à tona que o comitê que criou a tal pirâmide era composto na sua maioria por representantes das indústrias de produtos animais (carne, laticínios, etc).
O governo então pegou o esquema que esses médicos tinham criado, chamado Power Plate, e mudou para agradar essas mesmas indústrias: substituiu "legumes" por "proteína" e adicionou o tal copinho de leite. Isso virou o My Plate. Os médicos estão processando de novo.
Esta é a versão original do prato, no site da organização que o criou, o Physicians Committee for Responsible Medicine:
http://pcrm.org/health/diets/pplate/power-plate
Eles promovem a dieta vegan como a mais saudável, com base em décadas de estudos médicos e científicos.
Sobre as suas dúvidas de como usar esses esquemas, acho que não existe nenhum jeito que seja fácil e inclua todas as variações de comida que as pessoas preparam, então se você quiser manter uma dieta balanceada, tem que aceitar uma certa quantidade de trabalho.
O que eu e a minha esposa fazemos é isto: preparamos a maior parte da nossa comida nós mesmos, assim você sabe o que vai dentro. Com o resto, lemos os rótulos e usamos bom senso. E somos vegans, o que ajuda muito.
Mauro, não entendi o motivo do processo. É por plágio?
Oi Francine,
Não, depois do processo contra a MyPyramid o PCRM ofereceu o uso do prato para o governo, mas daí o comitê mudou para contentar as indústrias agropecuária e de laticínios.
O processo é pela mesma razão do anterior, que eu saiba, pelo comitê favorecer os interesses de representantes de industrias privadas ao invés do interesse público.
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